A concentração fundiária no território brasileiro não
é um problema pertencente somente ao presente momento do país, sendo polêmica
desde o período colonial – com o sistema de capitanias hereditárias, por
exemplo – até os dias atuais, denotando um caráter grotesco pela grande
oposição entre latifúndios, por vezes nem totalmente aproveitados, e milhares
de indivíduos sem qualquer propriedade para exercer trabalho. De fato, a partir
disso, muitos conflitos surgem no meio rural, seja pela tomada de terras indígenas
para compor latifúndios, seja pelo desmatamento desenfreado que prejudica o
meio-ambiente ou, então, pelo desejo do pequeno produtor em reduzir as grandes
desigualdades na distribuição de terras e desse modo conquistar um espaço para
sobreviver. Assim, com as diversas mudanças políticas,
culturais e econômicas presentes ao longo da história brasileira,
transformações na sociedade foram incentivadas, consequentemente ensejando
alterações no direito também. Visto que a função da jurisprudência é procurar
manter o equilíbrio em sociedade a partir das demandas e necessidades da mesma,
o desenvolvimento de um direito mais socialmente consciente foi inevitável. É a
partir de tal concepção que a doutrina da função social emerge, limitando as
antigas visões individualistas com a intenção de conceder aos sujeitos de
direito não só uma igualdade em seu aspecto formal, mas protegendo também sua
liberdade material e moral.
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos defende que
os direitos e garantias instituídos com a Constituição Federal de 1988 são os
frutos das lutas das classes subalternas e, logo, devem ser sedimentados na
atualidade. Para isso, o Direito teria um caráter do “constitucionalismo
transformador”, como proposto pelo autor, o qual materializaria tais direitos
para assim vigorarem efetivamente, reduzindo as desigualdades no âmbito da
representatividade. A função social da propriedade seria um desses direitos
adquiridos, o qual está continuamente em conflito com o próprio direito de
propriedade, sendo esse um embate causado principalmente pelo interesse
econômico, uma vez que a função social pode levar a desapropriação de grandes áreas
pertencentes a empresas, como no famoso Caso da Fazenda Primavera
O mencionado caso é mais um exemplo em que há
confronto entre princípios da sociedade e antinomia jurídica. De um lado está
quem priorize o direito à propriedade, presente no art. 5º da Constituição, e
de outro há quem reivindique o direito à moradia, previsto no art.6º da Lei
Maior. Neste caso, soma-se também o dever de atribuir à terra uma função social
e, caso isso não seja cumprido, a mesma é passível de ocupação e destinação
para reforma agrária. Boaventura de Sousa Santos tece explicações para essa
dicotomia através da separação do direito, entendendo que existe uma diferença “abissal” instituída na jurisprudência, dividindo radicalmente o direito em dois sistemas
jurídicos: o direito dos 1% e o direito dos 99%, o direito dos opressores e o
direito dos oprimidos. O direito dos 1% seria aquele representante dos interesses
da elite, dos detentores de poder e da parte da população mais abastada e
influente. Enquanto que o direito dos 99% seria aquele representante das
camadas mais populares, sem grandes riquezas ou poder de influência. Nesse diapasão, para eliminar essa perspectiva de abismo, o direito deve
pensar dentro de uma nova hermenêutica “anti-hegemônica”, que, ao contrário de
suprir somente as expectativas dos dominantes, procura criar um equilíbrio de
oportunidades para toda a sociedade.
Para analisar na prática a teoria de Boaventura e a aplicação dos preceitos
da Função Social, pode-se utilizar como objeto o Caso da Fazenda Primavera, a qual
foi invadida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no início da
década passada. Entendendo que a propriedade do caso não cumpria a função para
ela determinada na constituição, os desembargadores encarregados da decisão
negaram a reintegração de posse ao proprietário original do território,
assegurando, assim, um modo de moradia e trabalho para os membros do MST
envolvidos naquela ação. Dessarte, o citado aspecto abissal entre o
proprietário e o MST (representativos, respectivamente, dos 1% e dos 99%) foi,
a partir dos fins sociais do direito, consideravelmente diminuído, assegurando
a noção de Boaventura.
Sendo assim, a Fazenda Primavera torna-se um exemplo do embate entre os
direitos à propriedade e à moradia e a angariação da função social em
consonância com a sobreposição dos direitos de uma classe oprimida e
marginalizada em busca da efetivação de suas garantias constitucionais. Por
esse motivo, Boaventura legitima os movimentos sociais, visto que são eles os
responsáveis por empenhar-se na construção de pontes para dentro do, como
chamado por ele, “mundo do direito”, em um esforço para ocupá-lo, tomando o lugar
dos dominantes 1%. Desse modo, o sociólogo expõe que é necessário lutar (e
ocupar) o direito, mesmo que sem esperanças, visando a obtenção da igualdade ou
minimização de tais relações de poder.
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