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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Cara ou coroa?

    “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”: tal ideia, apregoada pelo filósofo Quincas Borba, da obra homônima de Machado de Assis, resume a teoria do Humanitismo. Conforme se apreende, o personagem concebia a vida por meio de sua associação a um campo estratégico de luta, tal como representavam, metaforicamente, as duas tribos antagônicas em disputa pela sobrevivência. Destarte, a teoria humanitista, não por acaso, pode ser atribuída como uma sátira às correntes cientificistas ao ilustrar o espaço da ciência na contemporaneidade: uma reprodução de relações raciais de poder, com acessibilidade e produção científica notadamente desigual. Sob tal perspectiva, cabe analisar, à luz da concepção de Augusto Comte acerca da Teoria dos Três Estágios, a necessidade de uma “virada epistemológica”, como proposto por Grada Kilomba. 

    Mormente, é factual que desde a Antiguidade, a razão tem sido objeto de discussão nas ciências sociais, sendo colocada, inclusive, como pilar principal da sociedade justa idealizada por Platão na célebre obra “A República”. Por sua vez, Augusto Comte, no século XIX, propôs uma teoria do desenvolvimento social baseada em três estágios: o teológico, o metafísico e o científico. Em sua visão teleológica, a ciência representava o auge da racionalidade humana, e seria por meio dela que a sociedade alcançaria a ordem e o progresso – lema que, inclusive, figura na bandeira do Brasil. Dessa forma, segundo Comte, a ciência deveria guiar a moral, a política e a vida social, com base em métodos universais. Sem embargo, a despeito da neutralidade do discurso comtiano, o aprimoramento do conhecimento evidenciou outras contradições: quem produz o saber científico, quais vozes são silenciadas e quais realidades são ignoradas? 

    Sobre isso, Grada Kilomba, ilustre teórica afro-europeia, afirma que esse exercício de pensamento a partir de tal questionamento permite visualizar e compreender como conceitos de conhecimento, erudição e ciência estão intrinsecamente ligados ao poder e à autoridade racial. A partir disso, a autora denuncia o epistemicídio – o apagamento sistemático dos saberes de povos colonizados – e demonstra como a ciência moderna, construída a partir de uma lógica eurocêntrica e colonial, marginaliza as vozes negras, indígenas e periféricas. Outrossim, no mesmo escopo, pode-se perceber a clara materialização da teoria desenvolvida pelos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer, responsáveis por analisar a denominada “razão instrumental” – em que o conhecimento tornou-se um instrumento de dominação. Logo, como seria possível a ciência representar o auge do progresso humano sendo que tantas vozes seguem excluídas de sua produção e validação e seus métodos e narrativas muitas vezes reforçam desigualdades em vez de superá-las? 

    Em virtude dos aspectos abordados, torna-se evidente a ambiguidade da ciência no tecido social, pois paralelamente às facilidades proporcionadas pelo avanço tecnológico, constata-se a instrumentalização da razão que representa uma fonte propulsora das hodiernas relações de poder. É imperioso, portanto, descolonizar a ordem eurocêntrica do conhecimento, como exemplificado por Grada Kilomba, propondo uma ciência mais democrática, plural e sensível às desigualdades estruturais ao dar voz aos saberes historicamente oprimidos. Por fim, em contraste com o otimismo científico de Augusto Comte, Grada Kilomba nos permite enxergar “os dois lados da moeda” ao salientar os limites do conhecimento hegemônico.

Amanda Caroline Vitorasso - Direito (Matutino) 

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