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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Funciona para quem? O avesso do funcionalismo durkheimiano.

 

Ao analisarmos a sociedade como um organismo vivo, cujos elementos estão interligados e cumprem funções específicas, aproximamo-nos da teoria funcionalista de Émile Durkheim. Para o sociólogo francês, cada estrutura social – desde a família até o sistema jurídico – opera como uma engrenagem em um máquina, exercendo, assim, um papel fundamental na manutenção da ordem e da coesão. Tal ideia recebe o nome de funcionalismo: uma abordagem que compreende os fenômenos sociais como fatos objetivos, exteriores ao indivíduo e dotados de coercitividade. Esses “fatos sociais”, como denominou Durkheim, moldam os comportamentos individuais e garantem a reprodução do tecido social. No entanto, ao examinarmos criticamente essa abordagem, torna-se inevitável o questionamento: o que acontece quando a funcionalidade atribuída às instituições perpetua desigualdades históricas? E, mais importante, para quem exatamente os elementos estão a funcionar?

Sob essa ótica, é possível refletirmos sobre acontecimentos atuais que revelam a força (ou o enfraquecimento) desses mecanismos. Tomemos como exemplo o aumento das fake news e o negacionismo científico que se intensificaram durante a pandemia de Covid-19 e ainda se reverberam no atual momento. Quando a sociedade (ou parte dela) questiona – em larga escala – instituições como a ciência, o jornalismo ou mesmo o sistema de saúde, observamos a fragilização de fatos sociais que antes garantiam uma coesão mínima. E essa crise de confiabilidade nas estruturas sociais simboliza um sintoma de disfunção no organismo social: se o “fato social” perde seu poder normativo, instala-se uma desorganização na sociedade e em suas instituições. No entanto, Durkheim não previu que exaltar a funcionalidade de cada instituição ocasionaria em uma romantização de que toda estrutura existente servisse, intrinsecamente, ao bem coletivo de modo igual. Assim, ao analisar o sistema prisional brasileiro, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking mundial de população carcerária e, para Durkheim, o crime não é um desvio absoluto, mas sim um fato social normal, que contribui para reafirmar as normas sociais. Contudo, quando observamos a superlotação das prisões, a seletividade penal que encarcera majoritariamente pessoas negras e pobres, e a privatização do sistema prisional, percebemos que a “função” do encarceramento tem servido não à coesão, mas ao lucro e à manutenção de uma ordem excludente. Portanto, a criminalização da pobreza, nesse cenário, é extremamente funcional – mas apenas para quem lucra com ela. 

Além disso, o atual contexto brasileiro, por exemplo, também pode ser interpretado sob essa lente crítica, pois o próprio conceito de solidariedade – central no pensamento durkheimiano – merece uma análise cuidadosa. A solidariedade orgânica, típica das sociedades contemporâneas, assenta-se na interdependência dos indivíduos em funções distintas. Mas essa interdependência é real ou apenas aparente? A precarização do trabalho em plataformas digitais, como Uber, ou iFood, revela uma interdependência funcional apenas para o capital. Enquanto isso, os trabalhadores, sem direitos trabalhistas garantidos, vivem sob a ilusão de autonomia e liberdade empreendedora. Essa aparente funcionalidade serve, antes de mais nada, à lógica do lucro, e não à coesão social. Sob esse viés, Pierre Bourdieu, ao tratar da violência simbólica, ajuda-nos a compreender como sistemas de dominação se perpetuam através de estruturas que aparentam ser neutras ou naturais, como o funcionalismo. No caso dos “entregadores de aplicativo”, o discurso da meritocracia e do “trabalhador que faz o seu próprio horário” opera como ferramenta ideológica que mascara a realidade: jornadas exaustivas, ausência de proteção legal, dependência de algoritmos opacos e a constante incerteza financeira. Novamente, a coesão social e as instituições parecem funcionar perfeitamente – o serviço é rápido e o lucro é alto – menos para quem pedala por horas, muitas vezes sem sequer saber se vai conseguir pagar o almoço do dia seguinte.

Portanto, é possível afirmar que o funcionalismo, embora tenha oferecido importantes contribuições para a compreensão da ordem social, mostra-se insuficiente para explicar as contradições e desigualdades estruturais que atravessam a sociedade contemporânea. Desse modo, antes de questionar "o que funciona?" é importante perguntar-se "para quem funciona?", pois ao supor que todas as instituições cumprem funções indispensáveis à coesão, a teoria de Durkheim corre o risco de legitimar práticas excludentes sob o pretexto de estabilidade. Assim, a romantização da funcionalidade institucional não apenas silencia os conflitos sociais, como também contribui para a naturalização de violências normalizadas – sejam elas no sistema penal ou na dinâmica de trabalho realizada por entregadores de aplicativo.


Otávio Rodrigues Ferin - 1º ano Direito Noturno.

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