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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Do outro lado da cidade

    Quando o brilho do sol atinge a janela de sua cozinha, Helena já está de banho tomado e de uniforme vestido. Seus movimentos são os mesmos de ontem, e do dia antes dele, e da semana antes desta. Em seu interior nasce um sentimento de alívio, já que amanhã era sábado e sábados eram usados para descansar seus ossos, sua cabeça, seu espírito. Os seus pensamentos no caminho até a fábrica em que trabalhava não são interessantes o suficiente para serem narrados  são os mesmos de sempre, cheios de nada. 

    Já no local, enquanto sua pele queima com a cola usada na produção, Helena mergulha em frustração. Ela sabe que todos os seus tios e tias pensam o mesmo sobre ela: se tivesse estudado, poderia ser alguém na vida. Ou, se tivesse a capacidade de ter seu próprio negócio, não passaria horas suando sem a benção do ar fresco. “Pelo menos eu sou trabalhadora”, pensa ela, “não sou uma vagabunda como o filho da Tati, que já tem 16 anos e não procura um emprego”. Essa ideia a consola como um abraço. 

    Outro consolo que Helena procura é o de seu maior sonho. Não vê a hora de poder encher o peito e dizer que comprou seu carro sozinha, sem ajuda de seus pais. Ah, como vai ser bom ver a cara de seus irmãos! Gostaria de saber o que Helena pensaria se alguém dissesse o quão tosco o seu sonho parece para os olhos alheios — não para as pessoas de seu convívio, mas para seus patrões. Não que eles saibam dos desejos de Helena; todo o conhecimento que eles têm sobre a mulher é o que está escrito em algum lugar do RH. 

    Já Helena sabia muito da vida dos patrões. Amava passar na frente do condomínio de um deles e admirar de longe as ruas de dentro. Também admirava muito tudo o que eles tinham conquistado — não eram estagnados como ela. Viajavam muito, compravam muito, viviam muito. “Mas será que vale a pena?”, se perguntou, “Sempre vejo o senhor Matias estressado, deve ser uma dor de cabeça enorme administrar uma fábrica. Deus me livre!”. Quase dou risada dela, já que sei muito bem que nesse momento o senhor Matias não sente estresse nenhum enquanto compra carne pro churrasco que vai dar em seu rancho no fim de semana. Diferente de Helena, que sentiu seu estômago chorar diante do preço da carne nas últimas cinco vezes que foi ao mercado.

    No final do expediente, Helena caminha para casa com o cansaço preenchendo cada centímetro de seu corpo. Não que ela tenha tempo o suficiente para reclamar — tudo o que consegue pensar é no quanto está grata por não ser sua colega Fátima, que foi demitida hoje. 

    Ao chegar em casa, agradece a Deus por ter lhe dado um emprego digno e por ter comida na mesa, e espera o jornal acabar para poder assistir sua novela. Olhando para a TV, nenhum pingo de indignação a alcança quando vê um desses tais políticos dizer que ensino superior tem que ser para poucos. “Deve ser isso mesmo, faculdade é coisa séria, não dá pra ser pra todo mundo não, imagina a bagunça se todo mundo for formado!”. Helena não liga para as outras notícias — tudo o que passa por sua mente é saber se o personagem milionário da novela vai conseguir fugir do sequestro. 

    Do outro lado da cidade, o senhor Matias assiste a mesma notícia — e as palavras que saem de sua boca são as mesmas proferidas por sua empregada. Vou tentar te explicar o porquê: em um mundo como o nosso, o explorador controla cada pensamento de seus explorados, e acredite em sua narradora quando ela diz que a exploração não acaba dentro da fábrica — ela cerca o explorado por todos os lados e saídas.

 

 Camilly Vitória da Silva, 1º semestre de Direito - Noturno (Turma XXXVIII)

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