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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Como estará Edileusa hoje?

Eu tinha 10 anos quando me deparei com esse livro pela primeira vez. A minha professora do 5° ano havia o escolhido para lermos no bimestre.  O fato é que me marcou, pois nunca mais o folheei e lembro até hoje – em linhas gerais claro, não com uma riqueza de detalhes – da história de Edileusa. Edileusa, assim como eu na época, tinha 10 anos. Só que éramos diferentes. Ela vivia com a mãe e os cinco irmãos em um barraco na favela. Sua mãe Zefa trabalhava como lavadeira e cabia à Edileusa cuidar de todos os seus irmãos, o que significava toda uma infância perdida por responsabilidades das quais ela não podia fugir.

“Quando está ali, viajando durante horas, em pé, lembra dos filhos, dos seis, lá no barraco, por conta da Edileusa, que já sabe fazer arroz, feijão, fritar uma batatinha, fazer carne... ‘Quando a gente vai ter carne, mãe? ’, perguntam com os olhos arregalados de vontade. A culpa é da televisão. Antes de ir embora, o marido ainda comprou uma, de segunda mão, e a criançada fica assim, de olho vidrado, enxergando aquelas coisas boas que aparecem nas propagandas, outros meninos botando guloseima na boca, eles ali quase sem nada. Como é que vai explicar pros filhos que uns têm e outros não têm comida que chegue? Dá um aperto no peito, um sufoco. ‘- Quero um morango, manhê!’”

Eu lembro de uma cena específica do livro em que Edileusa, mais nova, teve que fazer o almoço, mas por ser pequena era preciso que ela pegasse um banco para conseguir altura necessária para manusear a panela – e é aí que acontece um acidente e a panela fervente vira na garotinha ou em outra cena, em que Edileusa, ingênua, ferve a água para banhar sua irmãzinha e a coloca dentro da água fervendo, queimando a bebê “A menina aos gritos, tempo só de correr pro pronto-socorro, onde nem queiram atender porquê o carnê do INSS estava atrasado. Fez tamanho escarcéu que acudiram a menina. Saiu até nos jornais. ”  E é claro que Edileusa não tinha como ir à escola, por mais que seu maior sonho fosse estudar e ser uma artista, dona dos palcos.

Ler o livro, na época, para mim, significou estar frente a frente com outra realidade chocante – ainda mais por ter do outro lado uma garota de 10 anos brasileira, assim como eu, só que em situações completamente diferentes. E claro, o livro trouxe indagações. Por que é assim? Por que Edileusa e sua família tem de viver de forma precária? Por que ela quer muito estudar e não pode? Por que tanta desigualdade? Por que? Por que? Trabalhar para viver? Ou viver para trabalhar? Viver ou sobreviver? E hoje, penso: como estará Edileusa hoje? A primeira edição do livro é de 1986 e comprar carne já era uma realidade distante. Atualmente, 35 anos depois, nada mudou. Parece um ciclo sem fim.

E recorro então, ao tema da redação da UNESP esse ano: tempo é dinheiro? Parece que o mundo configura-se cada vez mais em uma sociedade fugaz, marcada pelo consumismo, pela obsolescência programada, pela necessidade excessiva de produção, em que as relações econômicas ditam e se sobrepõem às relações sociais e humanas – em paralelo com o materialismo histórico-dialético. Para Marx e Engels, a compreensão das sociedades humanas se daria a partir da forma pela qual os bens materiais são produzidos e distribuídos entre os seus integrantes; e pela luta de classes, que seria a contradição entre os interesses de dominantes e dominados (Edileusa está aqui).

E Edileusa, como estará nesse mundo volátil? Se ela logrou em continuar os seus estudos, sem ter que abandoná-los por todas as questões antes abordadas e tornou-se artista, há uma grande probabilidade de estar vivendo um momento de insegurança. Decidir ser artista no Brasil é certamente um ato de coragem e resistência. Talvez teria ela iniciado uma faculdade? Ou teria ela começado a ajudar sua mãe a lavar as roupas das patroas da zona sul? Será que ela tem conseguido colocar carne em seu prato? Será que procura emprego e não acha? Empregar-se é cada vez mais difícil. E para arrumar um emprego hoje, ela terá que ser flexível. Na verdade, terá que ser uma mulher elástica. E os seus irmãos, como estão? São muitos, né?

Mas uma coisa é certa: Edileusa tem uma força de vontade e uma resiliência que impressionam a qualquer um - contudo, parecem ser, infelizmente, atributos pequenos se comparados às estruturas e as dominâncias que cercam e aprisionam Edileusa desde o nascimento. Será que Edileusa e sua família sobreviveram à pandemia? Por aqui, desejo apenas o melhor para ela - e talvez, haja sim um ponto em comum entre mim e a Edileusa sim: sonhar, na esperança de que um dia, o sonho torne-se realidade. Mas como alcançar isso? Para alguns, como Marx, por meio de uma Revolução.

 

Laura Ruas, Direito Matutino.

 


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