Eu
tinha 10 anos quando me deparei com esse livro pela primeira vez. A minha
professora do 5° ano havia o escolhido para lermos no bimestre. O
fato é que me marcou, pois nunca mais o folheei e lembro até hoje – em linhas
gerais claro, não com uma riqueza de detalhes – da história de Edileusa.
Edileusa, assim como eu na época, tinha 10 anos. Só que éramos diferentes. Ela
vivia com a mãe e os cinco irmãos em um barraco na favela. Sua mãe Zefa
trabalhava como lavadeira e cabia à Edileusa cuidar de todos os seus irmãos, o
que significava toda uma infância perdida por responsabilidades das quais ela
não podia fugir.
“Quando
está ali, viajando durante horas, em pé, lembra dos filhos, dos seis, lá no
barraco, por conta da Edileusa, que já sabe fazer arroz, feijão, fritar uma
batatinha, fazer carne... ‘Quando a gente vai ter carne, mãe? ’, perguntam com
os olhos arregalados de vontade. A culpa é da televisão. Antes de ir embora, o
marido ainda comprou uma, de segunda mão, e a criançada fica assim, de olho
vidrado, enxergando aquelas coisas boas que aparecem nas propagandas, outros
meninos botando guloseima na boca, eles ali quase sem nada. Como é que vai
explicar pros filhos que uns têm e outros não têm comida que chegue? Dá um
aperto no peito, um sufoco. ‘- Quero um morango, manhê!’”
Eu
lembro de uma cena específica do livro em que Edileusa, mais nova, teve que
fazer o almoço, mas por ser pequena era preciso que ela pegasse um banco para
conseguir altura necessária para manusear a panela – e é aí que acontece um
acidente e a panela fervente vira na garotinha ou em outra cena, em que
Edileusa, ingênua, ferve a água para banhar sua irmãzinha e a coloca dentro da
água fervendo, queimando a bebê “A menina aos gritos, tempo só de
correr pro pronto-socorro, onde nem queiram atender porquê o carnê do INSS estava
atrasado. Fez tamanho escarcéu que acudiram a menina. Saiu até nos jornais. ” E
é claro que Edileusa não tinha como ir à escola, por mais que seu maior sonho
fosse estudar e ser uma artista, dona dos palcos.
Ler o
livro, na época, para mim, significou estar frente a frente com outra realidade
chocante – ainda mais por ter do outro lado uma garota de 10 anos brasileira,
assim como eu, só que em situações completamente diferentes. E claro, o livro
trouxe indagações. Por que é assim? Por que Edileusa e sua família tem de viver
de forma precária? Por que ela quer muito estudar e não pode? Por que tanta
desigualdade? Por que? Por que? Trabalhar para viver? Ou viver para trabalhar?
Viver ou sobreviver? E hoje, penso: como estará Edileusa hoje? A
primeira edição do livro é de 1986 e comprar carne já era uma realidade
distante. Atualmente, 35 anos depois, nada mudou. Parece um ciclo sem fim.
E
recorro então, ao tema da redação da UNESP esse ano: tempo é dinheiro? Parece
que o mundo configura-se cada vez mais em uma sociedade fugaz, marcada pelo
consumismo, pela obsolescência programada, pela necessidade excessiva de
produção, em que as relações econômicas ditam e se sobrepõem às relações
sociais e humanas – em paralelo com o materialismo histórico-dialético. Para Marx e Engels, a compreensão das
sociedades humanas se daria a partir da forma pela qual os bens materiais são
produzidos e distribuídos entre os seus integrantes; e pela luta de classes,
que seria a contradição entre os interesses de dominantes e dominados (Edileusa
está aqui).
E Edileusa, como estará nesse mundo volátil? Se ela logrou em continuar
os seus estudos, sem ter que abandoná-los por todas as questões antes abordadas
e tornou-se artista, há uma grande probabilidade de estar vivendo um
momento de insegurança. Decidir ser artista no Brasil é certamente um ato de
coragem e resistência. Talvez teria ela iniciado uma faculdade? Ou teria ela
começado a ajudar sua mãe a lavar as roupas das patroas da zona sul? Será que
ela tem conseguido colocar carne em seu prato? Será que procura emprego e não
acha? Empregar-se é cada vez mais difícil. E para arrumar um emprego hoje, ela
terá que ser flexível. Na verdade, terá que ser uma mulher elástica. E os seus
irmãos, como estão? São muitos, né?
Mas uma coisa é certa: Edileusa tem uma força de vontade e uma
resiliência que impressionam a qualquer um - contudo, parecem ser,
infelizmente, atributos pequenos se comparados às estruturas e as dominâncias
que cercam e aprisionam Edileusa desde o nascimento. Será que Edileusa e sua
família sobreviveram à pandemia? Por aqui, desejo apenas o melhor para
ela - e talvez, haja sim um ponto em comum entre mim e a Edileusa sim:
sonhar, na esperança de que um dia, o sonho torne-se realidade. Mas como
alcançar isso? Para alguns, como Marx, por meio de uma Revolução.
Laura Ruas, Direito Matutino.
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