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segunda-feira, 18 de março de 2024

A questão da arte na contemporaneidade, sob o olhar de Grada Kilomba e René Descartes

  O pensamento racional-científico, descrito por René Descartes em “O Discurso do método” (1637), é formado em uma base rígida e bastante inflexível, que a princípio indicaria, portanto, a verdade. Porém, um conhecimento pensado e sistematizado por seres humanos, dotados de suas próprias vivências, experiências e saberes, tem um caráter subjetivo inerente, que muitas vezes é relegado apenas àqueles que pensam o mundo e a existência a partir de uma visão não hegemônica, que não compõem com a classe dominante, sendo então colocados na marginalização não apenas social, mas intelectual, restringindo a produção de conhecimento para aqueles que cumprem com os interesses da classe preponderante. O que é colocado em xeque por Grada Kilomba em sua obra “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano” na qual ela discute a posição de dominação na produção de conhecimento, e principalmente como o método daqueles que controlam a estrutura social é visto como imparcial, e tudo que não o seja é parcial e pessoal, mesmo que ambos sejam igualmente carregados de subjetividade. 

Na atual sociedade, essa dominação ideológica do método do que é ou não válido, do que é fato e do que é interpretação pessoal, se alastra por todas as áreas do pensamento e da expressão, inclusive na arte. Estabelecendo-se o possível recorte do cinema, existem diversas demonstrações dessa questão do método enquanto instrumento de dominação, vide o caso do Oscar, premiação essa vendida como aquela que premia os melhores filmes do mundo, de forma imparcial, meramente técnica e metódica, tal qual Descartes propõe. Enquanto ao mesmo tempo, elege para a competição, em sua imensa maioria, filmes da indústria estadunidense, fechando as portas para obras internacionais ou independentes, o que indica o estabelecido por Kilomba, há uma pretensa imparcialidade nesse método hegemônico, que apenas serve para garantir que o marginalizado, a minoria, jamais tenha acesso a fala e a expressão.  

Porém não apenas na questão institucional, de premiações e regulamentos, que esse imaginário se constrói, ele está impregnado por toda a sociedade e em como os indivíduos enxergam as mais variadas questões dessa temática, inclusive na política de dezenas de milhões de votos. Como pode-se demonstrar com um conjunto de fatos recentes envolvendo o ex secretário de cultura Mário Frias, que declarou em certa situação que proibiria o uso de pronome neutro em obras financiadas pela antiga Lei Rouanet, pois isso era caracterizado por ele como “piruetas ideológicas” e de comportamento militante e vândalo, declaração essa que viralizou nas redes sociais entre seus apoiadores. E então, meses depois dessa fala, o trágico ex secretário prometeu um acordo com dinheiro federal para produção de obras “pró-armas” dizendo, “Se a gente acredita em armas, precisamos criar os heróis”, o que evidencia a contradição proposta por Grada, o uso de pronome neutro, associado à causa LGBTQIAPN+, é visto como ideológico e militante, porém o uso de armas, feito pela elite, não, sendo apenas um fato social, sem ideologia ou militância. Logo, fica exposto como a proposição de Grada Kilomba sobre “Quem pode falar?” é pertinente, pois para a elite tudo aquilo que são seus interesses, suas maneiras de pensar, como o método de René Descartes, são senso comum, imparciais, livres de ideologia, técnicas e metódicas, e aquilo pensado por minorias e grupos marginalizados é político, ideológico, militante e vândalo. 

Logo, ao se negar a própria condição subjetiva, naturalmente humana, como faz René Descartes na busca de um método de verdade absoluta, se estabelece uma ferramenta que mascara a ideologia hegemônica como verdade e aquilo que está fora como parcial e não científico, como descreve Grada Kilomba. Dessa forma, à luz de temáticas da atualidade das minorias, o pensamento de Grada se articula de modo a questionar essa forma de subjugação, embasada em métodos como de Descartes. E a arte, portanto, em seu caráter político é crucial para a formação e organização de pessoas, e por isso é mirada por essa ferramenta visando sua destruição, pois arte, crítica e razão da elite para a elite é estéril e inexistente por si só, logo aquilo que é fora da elite representa uma ameaça a ser combatida pelos soldados da ideologia dominante, contrapondo então Descartes e Kilomba sob a tutela da arte e seu poder de dominação ideológico-cultural. 


Guilherme Goulart Rapacci, 1ºano de direito noturno.

RA: 241221021

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