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segunda-feira, 5 de maio de 2025

O Ópio do Povo

Felipe Junco da Silva (Direito Noturno)

A crítica desenvolvida por Karl Marx em A Ideologia Alemã marca um ponto de inflexão na história do pensamento social, ao propor uma ruptura com a tradição idealista que subordinava a realidade material às formas abstratas do espírito. Ao recusar a centralidade das ideias enquanto motor da história — uma herança direta do hegelianismo — Marx inaugura uma nova racionalidade: a concepção materialista da história, em que o ser social determina a consciência, e não o contrário. Nesse horizonte teórico, a análise das relações econômicas e sociais concretas substitui a especulação metafísica como fundamento da explicação histórica.

Diferentemente de Ludwig Feuerbach, que rompeu com Hegel mas ainda preservava uma visão essencialista do humano, Marx propõe uma antropologia histórica, segundo a qual o ser humano é o conjunto das relações sociais. A consciência, nesse quadro, não é dada, mas produzida historicamente no interior de estruturas objetivas. O conceito de modo de produção — entendido como a articulação entre forças produtivas e relações de produção — torna-se chave para a compreensão dos processos históricos. Cada modo de produção engendra uma forma específica de sociabilidade, que se manifesta tanto na organização do trabalho quanto nas instituições jurídicas, políticas e ideológicas, configurando o que Marx denominou de infraestrutura e superestrutura.

Ao situar a gênese da consciência nas condições materiais de existência, Marx introduz a categoria de alienação como elemento central de sua crítica à sociedade burguesa. No capitalismo, o trabalhador se vê separado dos meios de produção e do produto de seu trabalho, tornando-se uma mera engrenagem no mecanismo da acumulação. Essa alienação não é apenas econômica, mas também política, social e existencial — uma condição em que o sujeito é expropriado de sua humanidade e de sua capacidade criadora. A alienação se converte, assim, em reificação, isto é, na transformação de relações sociais em coisas, em mercadorias dotadas de vida própria, como o fetichismo da mercadoria demonstra.

Ao integrar essas categorias em sua análise, Marx constrói uma teoria do devir histórico atravessada por contradições estruturais — especialmente a luta de classes, motor dinâmico da transformação social. Longe de uma descrição estática da sociedade, o materialismo histórico e dialético apreende o movimento contraditório dos modos de produção como expressão das disputas entre classes antagônicas: senhores e escravizados, senhores feudais e servos, burgueses e proletários. O conflito, nesse sentido, é imanente à estrutura social e não mero acidente externo.

Nesse contexto, a noção de práxis adquire centralidade teórica e política. Não se trata mais de interpretar o mundo, como propunham os filósofos clássicos, mas de transformá-lo por meio de ações coletivas conscientes. A práxis revolucionária é, para Marx, o momento em que o pensamento se realiza enquanto força material, na medida em que se articula com a luta concreta das classes subalternas por sua emancipação. Trata-se, portanto, da síntese entre teoria e prática, entre análise crítica da realidade e intervenção transformadora.

A atualidade do pensamento marxiano torna-se evidente quando examinamos movimentos sociais contemporâneos que encarnam essa práxis ativa. Um exemplo eloquente disso foi a greve dos roteiristas e atores de Hollywood, deflagrada em 2023, que paralisou a indústria audiovisual estadunidense por meses. As reivindicações por melhores salários, regulamentação do uso de inteligência artificial e garantias contratuais mínimas revelam a precarização do trabalho intelectual no capitalismo avançado. Embora geograficamente localizada, a greve reverberou globalmente, dado o caráter internacionalizado da indústria cultural, escancarando as contradições entre capital e trabalho até mesmo nos setores tradicionalmente associados ao prestígio simbólico e à liberdade criativa.

As reações patronais e midiáticas, que procuraram reduzir o movimento a um capricho de celebridades ou a uma ameaça ao “livre mercado”, ilustram perfeitamente o mecanismo ideológico que visa neutralizar a práxis. Tais discursos buscam restaurar a ilusão de individualidade autônoma e despolitizada, negando o caráter coletivo e estrutural das reivindicações. Nesse sentido, a greve não é apenas um instrumento de pressão econômica, mas a própria materialização do saber crítico enquanto força social: é a teoria transformada em ação que confronta diretamente os mecanismos de exploração e alienação.

Outro campo em que a crítica marxiana demonstra sua pertinência é a análise da religião, especialmente no contexto do avanço das igrejas neopentecostais no Brasil. Longe de ser uma instância neutra de espiritualidade, a religião assume, na perspectiva marxista, um duplo papel: expressão do sofrimento real e mecanismo de sua perpetuação. A célebre fórmula “a religião é o ópio do povo” não desqualifica a fé em si, mas denuncia sua instrumentalização enquanto mecanismo de alienação. Em tempos de crise estrutural do capital, essas instituições religiosas oferecem consolo e esperança num além-mundo, desviando o olhar da população das causas materiais de sua opressão.

A ascensão política de segmentos religiosos e sua interferência direta nos aparatos do Estado revelam a funcionalidade ideológica da religião enquanto mecanismo de conservação da ordem. Prometendo redenção pós-morte e criminalizando formas de resistência terrenas, tais grupos atuam como sustentáculos da dominação burguesa, bloqueando a formação de uma consciência de classe insurgente. A promessa de salvação futura torna-se, assim, uma justificativa para a resignação presente, neutralizando a práxis e esvaziando o potencial revolucionário das massas.

Conclui-se, portanto, que a crítica marxiana permanece um instrumento fecundo para a leitura e a transformação da realidade. Sua centralidade na explicação das formas sociais modernas e na denúncia dos mecanismos ideológicos de dominação reafirma a atualidade de uma filosofia que se recusa a separar pensamento e ação. Diante da intensificação das desigualdades e da radicalização das formas de controle simbólico, a alternativa que se impõe não é a fuga para os domínios da abstração, mas o mergulho consciente e coletivo na práxis transformadora, única via possível para a emancipação humana concreta.

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