Cortam-se as flores, deixam-se os cabos
Sabia-se de
uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns
soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação
dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro
de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos,
medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo
o “hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo.(trecho de os
sertões)
As pessoas choravam nos seus
depoimentos, ficou difícil para contermos o nosso choro. Estavam arrasadas, sem
ter para aonde ir. A prefeitura ofereceu uma bolsa aluguel de 500 reais para
alugar uma casa, impossível, inclusive sofriam o preconceito de serem moradores
da ocupação Pinheirinho. Por volta das 04 da tarde deixamos o abrigo, as
pessoas queriam continuar relatar as suas tristezas, foi delicada a nossa
despedida, deixando para trás aquele povo sofrido por uma violência que jamais
esquecerão em suas vidas.(trecho de reportagem sobre
o caso pinheirinho)
Com os constantes debates acerca das leis e do direito, dois teóricos destacam-se com visões opostas: Hegel e Marx. O primeiro coloca a lei como necessária para a liberdade e o direito como uma forma de suprir as demandas da evolução do homem em sociedade, já que com ele toda limitação e singularidade individual ficam suprimidas; assim, o direito consolida-se como um pressuposto para a felicidade. Marx, por outro lado, classifica o direito como um instrumento de dominação político-social classista, sendo o Estado de Hegel apenas uma abstração, fundado em uma ilusão que impede a busca da felicidade real, deixando sempre o sonho de colher as flores, sem jamais ter a liberdade para alcançá-las. Baseando-se nessas duas correntes de pensamento político-filosófico, analisarei dois casos de luta pela permanência no Brasil: Canudos e Pinheirinho, que apesar de terem ocorrido em épocas distintas, contaram com o mesmo desfecho.
O massacre ocorrido em
Canudos é considerado uma das maiores vergonhas da história brasileira. A
comunidade era liderada por Antonio Conselheiro, o ícone de um movimento popular de
fundo sócio-religioso, e abrigava diversos moradores que proviam seu
sustento e conviviam pacificamente. Isso irritou diversos representantes da
ordem social burguesa, como o clero e os latifundiários, que se aliaram ao
governo para destruir essa realidade, não sem antes difamar os habitantes,
chamando-os de monarquistas e acusando-os de querer derrubar a República; com
isso, rapidamente angariaram o apoio da população. Assim, deu-se início a
tragédia. O Estado como libertador dentro da concepção hegeliana provou-se uma
farsa, já que apenas libertou os ricos de conviverem com a realidade de
miseráveis lutando colher as flores há tanto tempo prometidas.
Em relação ao caso
Pinheirinho, é fácil traçar um paralelo. Novamente, o direito provou valer
apenas para aqueles que podem comprá-lo, mesmo que isso signifique ignorar
direitos fundamentais, como o direito a moradia. Como no caso anterior, boatos
foram espalhados sobre o local, dessa vez por intermédio de uma das maiores
redes televisivas do país, o que mais uma vez trouxe o apoio popular (isso é, o
apoio da população paulista da direita burguesa). Dessa vez, entretanto,
tentativas de conseguir justiça por meio do judiciário foram feitas, mas
falharam. Um novo massacre ocorreu, e nenhuma lei foi capaz de impedi-lo.
Vigorou na República contemporânea a palavra de ordem do estado da Velha República:
“A questão social é uma questão de polícia”.
O fato do direito conduzir os
interesses de maneira classista e desigual está mais do que provado; aliás,
demonstra-se não apenas nos casos de alta repercussão como os citados, mas principalmente
na realidade cotidiana de uma boa parte do povo que definha para engrandecer
uma pequena parcela da sociedade. Como os burgueses têm consciência de que
criaram seus próprios coveiros, infundem nestes ideologias que os permitem
sonhar com uma vida de melhor qualidade, sem que nunca cheguem realmente a possuí-la.
E mesmo quando ela está quase palpável, tiram-lhes tudo o que quase
conseguiram, deixando apenas a lembrança do que poderia ter sido, mas jamais
ocorreu. Cortam-se as flores,
deixam-se os cabos.
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