Cultura
do cancelamento sob uma perspectiva durkheimiana
Para o pensador Émile Durkheim, o fato social (objeto de
estudo da Sociologia) seria “toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de
exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior”. É externo – dessa forma se difere do objeto
de estudo da Psicologia, por exemplo – porque existe fora das consciências individuais.
É coercitivo, pois exerce uma imposição social, ainda que às vezes
imperceptível (Durkheim compara esse caso com o peso do ar, que, mesmo despercebido,
continua presente e influencia o cotidiano). É, ainda, geral, pois pode se
manifestar nas individualidades, mas se trata de uma dinâmica social de
existência própria.
Diante dessas premissas, é essencial reconhecer os fatos
sociais como unidades que compõem o fenômeno - exclusivamente humano - da cultura
imaterial. Com o passar do tempo, as gerações vão acumulando conhecimentos
acerca de determinados modos de “fazer”, como, por exemplo, os relativos à
construção de moradia ou à alimentação. Tais exemplos, contudo, consistem em
suprir necessidades básicas da vida e o fato social é um fenômeno mais amplo,
que atinge o campo dos costumes, isto é, do sentir e do pensar de determinada
maneira. Este tipo de fato social é exemplificado por Durkheim com o idioma e o
sistema monetário. Ninguém é obrigado a se comunicar com a língua adotada por
seu país, ou a utilizar determinada moeda, mas é impossível viver de outro
modo. Daí se exprime a coletividade intrínseca aos fatos sociais, visto que é
exatamente a vida em sociedade que os sustenta.
De início, não aparenta haver algo de errado com os fatos
sociais, pelo contrário, parecem ser elementos essenciais para manter a ordem e
possibilitar a fluidez da vida em sociedade. Contudo, na atualidade, os fatos
sociais do espectro do pensar e do sentir, por vezes, se manifestam como uma
forma de autoritarismo velado. É o caso da cultura do cancelamento. O fenômeno
do cancelamento surgiu principalmente como uma forma de chamar a atenção de
indivíduos que fizessem algum tipo de manifestação preconceituosa em relação às
minorias sociais. A cantora Anitta, por exemplo, já foi acusada de se valer de estereótipos da população LGBT e da negritude para fins comerciais, sem abraçar de fato essas causas tão proeminentes no Brasil contemporâneo, e, por isso, perdeu patrocínios. Esse caráter punitivo-corretivo em sentido estrito apresenta
a nobreza de tentar construir um mundo mais plural e inclusivo. Entretanto, o
termo “cultura do cancelamento” nasceu com um viés pejorativo do fenômeno, pois
há quem alegue um autoritarismo velado e um falso moralismo exacerbado no ato.
Evidentemente, não são raros os casos de pessoas que não só sofreram boicote
por seus erros, mas foram verbalmente agredidas até o ponto de necessitarem de auxílio
psicológico no enfrentamento da situação.
Nesse olhar, é interessante traçar um paralelo com uma
ressalva feita pelo Durkheim acerca dos fatos sociais, qual seja, que nem
sempre a explicação dos fatos sociais se vincula às necessidades sociais
imediatas. No caso do cancelamento, o que se vê na prática é uma necessidade social
dos indivíduos reafirmarem o seu valor moral e os seus costumes/pensamentos “direitos”
de acordo com o que vige no pensamento coletivo, em determinado momento
histórico. É uma forma de exibição de qualidades do mesmo modo que uma foto em
redes sociais, por exemplo, mas, nesse caso não qualidades físicas, e sim
qualidades admiráveis de comportamento.
Por fim, tem-se que é interessante e atual a análise de
Durkheim sobre o conjunto social e são muito pertinentes, sobretudo, as
observações acerca dos costumes e da validação social (muitas vezes, velada)
procurada coletivamente por meio de práticas e instituições arraigadas.
Ademais, é válido pontuar, para não incidir em anacronismo, que Durkheim
constata essas necessidades sociais mais complexas e não tão evidentes de início, todavia, não é realizada uma
análise de juízo de valor sobre elas.
Isabela Mansi Damiski - Direito matutino XVIII
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