Em meu sonho, eu sou o Direito.
Não sei como sei que o sou - é um sonho, afinal de contas, e, como tal, se presta ao propósito dos sonhos: o de não fazer absolutamente nenhum sentido.
Só sei que sou o Direito.
E estou em um café.
Há três senhores respeitáveis sentados a uma mesa. Uma menina grávida, aos prantos, sentada em outra. Dois auto falantes em uma terceira. Na quarta, um vulto que não consigo identificar.
Como me é instintivo - e porque faltam mesas para mim -, me dirijo à menina primeiro.
- O que houve? - puxo uma cadeira
- É meu bebê - ela chora
Instintivamente, olho para sua barriga, e me horrorizo ao ver uma pequena cruz incrustada em sua pele. Emudeço.
- Está tudo bem, rapaz - um homem em jaleco senta-se à mesa - vai ficar tudo bem - dirige-se a ela.
- O que houve? - pergunto, impressionado com minha diversidade de formulação de frases
Ele suspira, e inclina-se para sussurrar:
- O bebê vai nascer morto.
Meu queixo cai. Como ele sabe?
- Anencefalia - claro. Sonho. Ele lê meus pensamentos - Um caso raro em que o bebê, por má formação fetal, não possui cérebro, calota craniana, cerebelo e meninges. Basicamente, não há vida.
Olho para a menina chorando. Por que ela mantém essa gravidez?
- Porque você não permite o contrário!
(Eu realmente preciso controlar meus pensamentos)
- É uma questão de saúde pública, entende? - o médico completa, cansado.
É CRIME. É CRIME. É CRIME.
Ecoa na minha cabeça.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Ecoa em outra voz.
O médico me analisa e balança a cabeça em reprovação.
Sinto vontade de abraçar a menina.
Atordoado, me levanto e paro em outra mesa - a dos auto falantes. Objetos não vão me incomodar, pensei.
Mas é claro que, em sonho, um objeto nunca é só um objeto.
AUTO FALANTE 1: ABORTO É ASSASSINATO
Tomo um susto e dou um pulo para trás. Deste ângulo, posso ver algo escrito nos auto falantes.
AUTO FALANTE 2: Mas se a criança não tem chance de vida...
AUTO FALANTE 1: HEDIONDO
AUTO FALANTE 2: ...forçar a mãe a manter uma gravidez fadada a fatalidade.
AUTO FALANTE 1: DEMONÍACO
AUTO FALANTE 2: ora, veja bem: o Estado é laico! E ele também.
Viram-se para mim.
AUTO FALANTE 2: Permita!
AUTO FALANTE 1: NÃO PERMITA!
AUTO FALANTE 2: Permita!
AUTO FALANTE 1: NÃO OUSE!
Ok, objetos não foram a melhor escolha. Mas esse com o... crucifixo?, é um crucifixo?, está particularmente aterrorizante.
Me levantando para sair, consigo ler o que estava escrito neles: opinião pública. Mas é lógico.
Pessoas, penso. Preciso de pessoas.
- ...é claro que ele costuma ser manuseado de forma a favorecer as classes dominantes, Marx! O que não é? Tudo que eu disse é que precisamos evitar o formalismo e o individualismo. Não entendo sua ira.
Puxo uma cadeira à mesa dos senhores, já levemente arrependido.
- E falando no diabo... - o senhor que falava se interrompe e os três olham para mim.
Faço um aceno de cabeça.
- Ora, não seja encabulado! - Bourdieu (de novo: sonho) se dirige a mim - você pode nos auxiliar em nosso impasse!
- Ele não auxilia ninguém que não seja da classe dominante - Marx fala entredentes
- Vamos, Marx, não seja hostil - Kelsen repreende, e sorri para mim - você se incomodaria de responder a uma pergunta?
- Você se julga autônomo? - ele não espera minha resposta
- Ele é a submissa da classe dominante - Marx resmunga. Sinto cheiro de conhaque vindo de seu café.
- Eu... eu... - gaguejo
- Raios, Kelsen, não pegue nosso convidado desprevenido - Bourdieu sorri - meu caro... Aproveite o silêncio.
Aproveito.
Como é um sonho, não sei quanto tempo se passou até que ele retome a palavra:
- Agora pense: como você se sente em relação ao caso da moça ao lado?
CRIME.
DIGNIDADE.
INTEGRIDADE PSICOLÓGICA.
DIREITO À VIDA.
Vozes. Muitas e muitas vozes.
Ele sorri, satisfeito.
- Eu sabia. Conversa consigo mesmo.
Os outros dois dão um muxoxo.
- Não ligue para eles, caríssimo. Esse aqui - aponta para Kelsen - se recusa a acreditar que você é totalmente autônomo e não dialoga consigo mesmo de forma conflituosa. Não é por mal, entende: ele vê grandiosidade demais em você.
Kelsen me dá uma piscadela.
- E esse aqui... Bem. Ele só não gosta tanto assim de você, mesmo.
Marx parece muito distraído com sua xícara vazia.
- Concordo com ele que você pode ser instrumentalista por vezes. Não se ofenda, por favor! Mas, justamente por não acreditar que você seja formal(ista) neste nível, duvido que seja arrogante a ponto de se achar autônomo: creio, então, que sua preferência não se encontre tão somente nas classes privilegiadas como crê meu amigo, sim?
Consigo balançar a cabeça.
- Fantástico! - ele bate na mesa e desperta Marx, que derruba a louça no chão e xinga - ele tem autonomia para atender a demandas externas das demais classes, eu sabia.
- Não foi você quem disse agora há pouco que ela é relativa? - Kelsen retruca
- Ah sim, sim. De fato. - vira-se para mim - seu poder simbólico, o instrumento que confere relevância a esses interesses que você pode defender dentro do campo, espaço onde são defendidos, é um tanto... Peculiar. Dificultoso, se me permite. Mas é - vira-se para Kelsen, vitorioso - uma autonomia.
Eles começam a discutir entre si.
- Se me permitem a pergunta...
Todos se viram para mim.
- Esses interesses - continuo - como saberei quais são?
Bourdieu sorri, triunfante
- Fazendo o que fez em todas as mesas até agora: ouvindo-os.
- Apenas ouvindo-os?
Ele se inclina para mim:
- E você pode me dizer, com sinceridade, que tudo isso não o afetou?
Sinto meu coração apertar pela menina grávida, e sinto o baque do laudo médico e da opinião pública.
- Campus, meu caro. Agora vá - ele acena com a cabeça para a última mesa - o habitus o aguarda.
Me levanto da mesa e me dirijo à última, sem saber o que esperar. Sentando à mesa, tenho uma grata surpresa:
Não sou mais o Direito. Sou eu. Com meu nome e sobrenome. E, à minha frente, a mulher que me conferiu os dois.
- O corpo da mulher é só dela, filho. Preciso que você, como homem, entenda sempre isso, sim? Precisamos ter empatia - ela se foi no mundo real há muito, mas toma chá do mesmíssimo jeito aqui -; é de empatia que esse mundo precisa.
Quero respondê-la.
Algo em mim se funde: agora sou os dois.
Eu mesmo e o Direito.
Juntos.
Como um.
Acordo com o sol batendo no meu rosto.
Olho no relógio e checo meu calendário: 12 de Abril de 2012.
Os dois dias de debate acerca da interrupção da gravidez em caso de anencefalia devem ter entrado na minha pele de tal forma que entraram no meu sonho.
Hoje é a votação da ADPF 54, e tenho menos de uma hora para estar apresentável.
Exausto como sempre depois de sonhos extensos, ainda não consigo deixar de sorrir: após dias de aflição, finalmente tenho certeza quanto a qual será meu voto.
Mariana Luvizutti - 1 ano Direito noturno
Nenhum comentário:
Postar um comentário