A anencefalia consiste na ausência parcial ou total do
encéfalo e da calota craniana, devido a uma má formação do tubo neural nos
primeiros momentos de formação embrionária. Estima-se que 50% das mortes em caso de anencefalia ocorram
ainda na vida intrauterina, e dentre os que nascem com vida, 99% falece logo
após o parto. O restante sobrevive por pouco tempo, mas realizando apenas
movimento involuntários controlados pelo tronco cerebral, como respirar e
engolir.
Em 2004, a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54 foi proposta pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com o objetivo de
declarar a inconstitucionalidade de qualquer interpretação que considerasse a
interrupção da gravidez em casos de anencefalia um crime, conforme as condutas
tipificadas nos arts. 124 e 126 do Código Penal brasileiro. Já em 2012, o
Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente o pedido, considerando que a
criminalização da interrupção terapêutica da gravidez nestes casos feria
princípios fundamentais da Constituição, como o direito à saúde, a dignidade da
pessoa humana e a liberdade e autonomia da vontade.
Esta decisão
teve como resultado um debate marcado pelos conflitos ideológicos entre grupos
que visam o direito de escolha da mulher gestante e defensores da “vida”. A
discussão abrangeu questões como a laicidade do Estado, o direito à vida, a
saúde física e psíquica, o direito de escolha e o direito sobre o próprio
corpo.
“Deuses e césares tem espaços apartados. O Estado não é
religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro” - Marco Aurélio Mello
De acordo
com a teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu, evidencia-se a
historicização da norma pelos operadores do direito que votaram favoravelmente,
que agiram “adaptando as fontes a circunstâncias novas, descobrindo
nelas possibilidade inéditas (...)”. Verifica-se, assim, que a decisão do STF
vai contra o que Bourdieu chama de instrumentalismo (concepção do Direito como
ferramenta de defesa da opinião e dos valores da classe dominante), uma vez que
diverge das convicções de um país majoritariamente católico, que enxerga o “aborto”
como crime.
A
tese de Bourdieu de que o Direito deve evitar o formalismo (entendimento do
Direito como força autônoma diante das pressões sociais) também se confirma na
ação analisada. Se por um lado, a parte que considera crime a interrupção da
gravidez em casos de anencefalia se deixa influenciar pela moral religiosa e,
com isso, impede medidas progressistas, por outro, o veredito do STF é
influenciado pelo crescente debate acerca dos direitos e das reivindicações
sociais como, neste caso, a luta feminista.
Observa-se,
ainda, a hermenêutica exercida pelos operadores do Direito, que colocado “(...)diretamente
perante a gestão dos conflitos e uma procura jurídica incessantemente renovada,
tendem a assegurar a função de adaptação ao real num sistema que, entregue só a
professores, correria o risco de se fechar na rigidez de um rigorismo racional”.
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