Estimado Lemos,
Apesar de já possuir a convicção de que a nossa intimidade dispensa quaisquer formas de apresentação, sinto-me inclinado a optar por alguma, tendo em vista o fato de que praticamente tudo acaba sendo inserido na internet, nos tempos modernos. Considerando que o presente comunicado demonstra uma tendência irrevogável de ser publicado, desejo que ele seja precedido por uma breve apresentação.
Chamo-me Roberto Gonçalves Marcondes, tenho cinquenta anos e, atualmente, presidio uma empresa que atua no ramo contábil, prestando suporte para pessoas jurídicas. A organização comandada por mim é chamada de “Contos de Réis”, existe há 70 anos e possui seis filiais espalhadas pelo país. Durante toda a minha gestão, iniciada em 2013, almejei propiciar uma estrutura organizacional exímia no que tange ao controle financeiro. Assim sendo, tradições e métodos que garantiram a eficiência no passado continuam sendo aplicados, com ressalvas mínimas. Nenhum planejamento que as coloque em risco é aceito e uma exemplificação apropriada para este fato é a implantação de sistemas digitais de controle financeiro. Meu antecessor (o meu pai) sempre insistiu em reiterar que computadores eram instrumentos de alienação e de dominação comunista. Ele sempre foi sábio, então, por um tempo, segui os seus conselhos e, assim, procurei protelar a inserção de computadores nas rotinas contábeis. Porém, com o advento das necessidades atuais, as empresas começaram a desejar um tratamento digital mais aprimorado e digitalizado. Não tive outra opção senão ceder. Atualmente, temos um dos melhores sistemas do mercado (de acordo com a Jéssica, do setor financeiro), mas, ainda assim, insisto em fazer todos os balanços patrimoniais da empresa em um livro físico. Não se pode estar suscetível à alienação, tampouco à insegurança do âmbito virtual. Contudo, este não é o cerne do quadro em questão, como já deve ser do seu conhecimento, Lemos.
O estímulo que propiciou em mim o desejo de encaminhar-lhe o presente e-mail foi a última entrevista de emprego realizada por mim, no dia de ontem, – de modo mais específico, a mulher que a entrevista em questão me apresentou. Você, enquanto o advogado da empresa, certamente já conhece as minhas predileções em termos de postura profissional. O currículo da mulher (cujo nome não apresentarei para preservar-lhe o direito de privacidade) era excepcional. Ele expõe trabalhos em grandes empresas de contabilidade, uma graduação no ramo e, ainda, em Economia, e, pelas minhas conferências, ela não teve nenhuma questão problemática durante as suas experiências anteriores. Estava prestes a contratá-la imediatamente, Lemos. Ela parecia ser a funcionária ideal. Porém, como parece ser de praxe, fui enganado pelas expectativas. Nunca me senti tão transtornado.
Na ocasião da entrevista, ao me aproximar da sala específica para ela, passei ao lado de uma mulher com uma aparência questionável. Não digo no sentido de beleza, pois outras mulheres não me interessam mais do que a Cláudia (aliás, completamos vinte anos de casados, ainda na quarta, dia 28). O que me deixou intrigado foram, em específico, dois fatores: (I) a cor dos seus cabelos é azul e (II) ela estava com uma roupa que nunca seria adequada para um espaço organizacional. A jovem portava um casaco de pelos intensamente rosa, uma blusa branca, uma calça preta com incontáveis rasgados e um tênis (que chamam de All Star), também rosa. A minha secretária, Carla, disse ao meu ouvido que era ela quem seria entrevistada e, neste momento, silenciosamente agradeci ao meu filho por ter feito com que eu pagasse um plano de saúde. Senti os prenúncios de um infarto.
Você sabe que eu não sou preconceituoso. Todos podem circular como bem entenderem, contanto que não o façam na minha presença. Não sou capaz de aceitar uma postura tão negligente. Voltemos ao ponto central.
Após ter acalmado os meus impulsos de dar meia-volta, notei que a jovem estava com a mão estendida para mim. Não pude deixar de notar que ela carregava uma aliança de casamento. Ao menos era casada. Cumprimentei-a brevemente com medo de que a alegria que irradiava dela fosse transmitida para mim e me fizesse colocar algum fator gritantemente rosa. Levei-a em direção à sala, ao lado da Carla; em seguida, iniciamos a entrevista.
O relato dela foi estritamente fiel ao currículo. A formação dela era, de fato, admirável. Através do que ela explanou, notei traços de organização, destreza e de eloquência fascinantes. Juntamente com esses pontos, verifiquei, também, que o casaco rosa parecia estar rindo de mim. Decerto, uma afronta.
Forcei-me a conter o meu impulso de pedir que Carla trouxesse um roupão para a jovem para que esta o utilizasse como substituto do casaco. As minhas confirmações de acompanhamento da conversa eram monossilábicas. Estava espantado pelo contraste entre o azul e o rosa e, concomitantemente, encantado pela formação profissional da mulher. Estava realmente indignado.
Ela finalizou a sua apresentação com algo em torno da seguinte declaração: “aah, gostaria de postular, para efeitos de maior compreensão, que sou, também, uma blogueira de moda”. Lemos, senti o impulso de sair correndo. Como eu poderia aceitar uma blogueira de moda (seja lá o que isso for), com os seus trajes intensamente coloridos e com o seu cabelo assustadoramente azul prestando auxílio a uma startup internacional? Por razões óbvias, não tive outra escolha. Exclui de imediato a possibilidade de contratação.
Agradeci pela exposição direta dos fatos e fiz elogios quanto à sua formação; porém, ao final, não plantei sementes de esperança. Disse a ela que, apesar de tudo, ela não poderia ser aceita em um ambiente contábil justamente por ser colorida demais. O clima que se sucedeu não foi amistoso. Ela me disse que eu estava sendo desrespeitoso, simplista e superficial, e que exporia o caso nas redes sociais. Carla direcionava olhares severos para mim.
Ao final da conversa, eu enxergava apenas dois tons: rosa e azul. Tinha de sair dali o mais rápido possível, posto que eu já havia tornado tudo muito complicado quando propus que, para ser admitida, ela pintasse o cabelo de preto e contatasse o estilista da minha mulher (ela não aceitou o cartão com o número dele). Em síntese, a entrevista foi um caos e, quando ele foi mitigado, agradeci novamente pela exposição do currículo perfeito. Ela foi acompanhada por mim até a saída do escritório e, desta vez, não houve aperto de mão.
Despedi-me e, enquanto estava indo em direção ao meu escritório, ouvi Carla pedindo o “arroba” da jovem. Espero que isso não seja um estabelecimento de compras de roupas e acessórios. Caso seja, terei de ter uma conversa bastante delicada com Carla e acredito que ela não gostará... Após todas as cores da minha visão terem sido reconvertidas para os tons de cinza característicos da minha sala, pude finalmente descansar.
Hoje, durante a manhã, Cara não olhou nos meus olhos e apenas disse que talvez seria interessante contatar o advogado da empresa, como segurança. É esta a razão do meu contato, Lemos. Precisamos resolver esta questão antes que outra empresa de design cancele o contrato conosco. Já se foram três, somente nas primeiras horas de atividade, de hoje.
Confio na sua capacidade, meu caro amigo!
Desde já, muitíssimo obrigado pela assistência!
Roberto Marcondes.
P.s.: para caso seja interessante e indispensável comentar, enquanto escrevia este e-mail, Carla mostrou para um “story” (pesquisei no google e parece-me que se trata de um vídeo curto) da jovem entrevistada, no dia de ontem. Nas imagens, ela comenta acerca de como os fatos sociais exercem uma influência estrondosa e silenciosa, até em entrevistas de emprego; regulando meticulosamente a forma de existir de todos aqueles que pertencem a uma sociedade. Tentei buscar, também, o significado dos fatos sociais no google, mas, desisti. Achei uma grande loucura. Fatores que influenciam de modo determinante a vida de todos, incluindo aqueles que utilizam casacos malucos? Onde já se viu? Realmente insustentável. Preciso, e com urgência, agendar uma consulta com o cardiologista.
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