Por muitos anos, e de diversas formas, vários autores tentaram
exemplificar a forma como nossa sociedade surgiu e passou a se organizar na
contemporaneidade. De fato, quase que a totalidade destas (como o contratualismo de
Rousseau, Locke e Hobbes, e outras teorias como a marxista, que pregava a
formação da sociedade como fruto do materialismo dialético) compreende o papel
fundamental o Direito para a consolidação e a manutenção da ordem. Pierre de
Bourdieu, sociólogo, é um dos grandes expoentes do século XX na enunciação e
descobrimento dos principais pilares da sociedade.
Para ele nossa sociedade seria um vasto universo composto por diversos
campos, como por exemplo, o campo social, o campo cultural,
o campo político, o campo econômico, o campo
jurídico (que é o objeto principal de sua análise) dentre outros. Cada campo possui
uma lógica própria de organização, fundamentação e existência, buscando se
diferenciar dos demais para alcançar uma legítima autonomia nas decisões
tomadas. Para tentar garantir essa autonomia e ainda
estabilizar a força deste campo específico, dentro de cada há
uma constante luta interna entre seus membros, de modo que se busca a
hegemonia, a última palavra, a decisão final, o veredito acerca
do que é, e do que "deve-ser". Poderíamos dar um exemplo claro acerca
dessas lutas simbólicas existentes dentro dos diversos campos:
dentro do campo científico, mas especificamente no ambiente
universitário, há uma luta para se dizer o que é ciência, como fazer ciência,
fechando o campo científico àquela linha hegemônica
construída.
Todos esses conflitos existentes dentro dos campos acabam
refletindo em seu exterior e levando diversos desses a disputar a força
dentro do espaço social. É neste momento que o campo jurídico ingressa
como agente definidor e regulador desses
confrontos, sendo marcado pelos outros como o "porta-voz" da razão,
da neutralidade e da universalidade. O campo jurídico verdadeiramente
é marcado por prerrogativas que o colocam nessa posição: para regular todas as lutas
simbólicas existentes dentro de si, o direito utiliza determinados habitus; podemos
elencar esses habitus como fruto do instrumentalismo e
do formalismo. Para "se fechar em si mesmo" e
conseguir garantir o monopólio da dominação sobre os demais campos sociais, o
Direito canaliza todas as possíveis soluções dos conflitos sociais para seus
métodos, que segundo Bourdieu, são formas de garantir a autonomia deste campo
social, e de conferir a ele a maior neutralidade possível em
suas decisões, não deixando-se conduzir por ideologias e fundamentações que
fujam da realidade palpável pela ciência tradicional (como os aspectos acerca
da possível "alma" do anencéfalo, presente na discussão acerca do
aborto destes no campo religioso).
Toda essa dinâmica é denominada por Bourdieu como aquela que divide o
campo das "possibilidades" de ação e controle do Direito de forma que
tudo que fuja dessas "possibilidades" perde seu valor (capital
social) para o campo jurídico propriamente dito, não podendo
ser analisado criticamente por este. Na ADPF 54, que foi marcada pela discussão
acerca da possibilidade de se realizar a interrupção da gravidez nos casos de
fetos anencéfalos, se conseguiu ver isso; todas as posições defendidas pelos
que eram contra, ou a favor desse método, se não fossem baseadas em
perspectivas "palpáveis" e "compreensíveis" à luz da
ciência, não eram consideradas como significativas para o veredito final.
O campo jurídico, tão analisado por Bourdieu, é um
simples reflexo das forças exteriores e interiores que o pressionam para
atender as diversas demandas sociais existentes. E essas são consequência da
constante luta por mais capital, por mais força social, enfim. Ainda
devemos considerar que a grande maioria das disputas sociais é levada ao
campo jurídico, por muitos perceberem que ali todos os
processos, a linguagem e a forma são específicos para a neutralidade e a
universalidade, ou seja, são discursos avalorativos (ao menos
na teoria). O Campo jurídico é essencial para a manutenção da ordem (e aqui a
questão do aborto revela isso) e ao mesmo tempo para a própria formação deste. Por
detrás de um enunciado normativo jurídico temos a presença de diversas lutas de
classe, lutas sociais que de modo geral devem buscar a garantia de acesso ao
direito para todos. Mas não podemos considerar ele como o único capaz de
resolver todos os problemas sociais. Não se pode dar a um magistrado o poder
que deveria ser conferido ao Legislador que teria por função primordial
"nos representar".
Na teorização da sociedade como fruto de uma dialética de realidades que
possuem capitais sociais diferentes, diversos, o Direito é aquele que possui a
maior quantidade de capitais disponível, podendo regular toda a sociedade de
modo geral. Apesar de todas as tentativas de se proclamar a autonomia do
Direito, deve-se ter a consciência de que este não é independente do todo que o
envolve, especialmente do campo social e econômico É
preciso que ao lado do campo jurídico esses concorram para as
melhores soluções dos conflitos sociais. Seria uma ingenuidade acreditar que
estes acabariam um dia, mas é possível sim que os conflitos sejam melhores
regulados se não apenas dos campos arbitre sobre todas as
realidades conflitivas existentes.
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