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domingo, 8 de março de 2015

Duplo impedimento

         Pierre Bourdieu em sua obra “A força do direito” busca entender a sociedade por meio de campos os quais se inter-relacionam e são palco de lutas simbólicas (enfrentamento de concorrência para a hegemonia de cada campo). Entre esses campos há o campo jurídico o qual, para ele, é um campo autônomo dentro da sociedade além de ser um sistema com uma dinâmica de conflito específica o que faz dele diferente dos outros.
            Além disso, o campo jurídico apresenta um vocabulário próprio e habitus próprio (disposições incorporadas e compartilhadas por meio de um grupo, aquilo que passa a fazer parte do indivíduo por meio das interações sociais; padrões de pensamento, conduta, comportamento). O campo jurídico, para Bourdieu, está em permanente efervescência em que o motivo dessas transformações são as lutas ligadas aos interesses associados às diferentes posições sendo, portanto, uma ilusão a independência do direito em face das relações de forças externas.
Assim, enquanto para o Kelsen o direito faz-se o por si só, se referencia em si mesmo; segundo Bourdieu, os agentes de cada campo trazem percepções de mundo diferentes. Percebe-se a mudança quando os agentes desse campo se modificam, quando os agentes desses campos passam a trazer consigo habitus diferentes (novas cosmovisões), como a questão do aborto anencefálico.
No caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, pleiteada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, a qual “acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, nos termos do voto do relator e por maioria”, coloca-se em questão o caso do aborto.
No entanto, no caso, não é um julgado sobre a questão do aborto em seu âmbito total, é apenas discutido sobre a tipificação de uma espécie de aborto – o aborto de feto anencéfalo. A questão para se tratar do aborto em geral ainda não ocorre; dessa forma, o caso não pode ser considerado uma mudança radical de perspectiva. Contudo, a razão pública contempla pelo menos minimamente o sentido de definição da vida fato que já é um avanço, ou seja, ao considerarem o abordo nessas circunstancias é uma mudança na cosmovisão desse campo jurídico.
Por isso há a importância da sociedade transformar o direito e adequá-lo, pelo menos o mínimo, à realidade social, ou seja, o campo jurídico está em constante efervescência por conta da dialética e da transformação da sociedade. Percebe-se, portanto, que se a sociedade não fosse mais fundada no machismo ou se este fosse reduzido, a questão do aborto estaria em nível geral e não específico. Estar-se-ia, ao menos, discutindo o direito da mulher em escolher se ela quer manter o fato ou não. E como inclusive aborda um dos Ministros, se a questão do aborto contemplasse o homem ela já estaria resolvida.

Conclui-se, dessa forma, que há um duplo impedimento à transformação do campo jurídico: além do espaço do possível – limitado e hierarquizado –, que o campo transforma a efervescência da sociedade e a compacta extremamente, a traduz em uma linguagem do próprio campo; a sociedade e seus paradigmas, como o machismo, também influenciam bastante para a transformação e o progresso ser lento e gradual do campo jurídico.

Gabriela Mosna - Direito Noturno

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