A instituição casamento remete, no imaginário comum, ao embrião de uma família nuclear, com base, geralmente, na união heteroafetiva, selada por meio de celebração religiosa. Sob analise mais profunda, é possível classificar o matrimônio como um "fato social", como teorizado por Émile Durkheim, e que foi, por anos, não uma celebração do amor e da futura construção de uma família, como é compreendido nos dias atuais, mas o cenário de diversos tipos de violência e opressão.
O divórcio, por sua vez, mecanismo jurídico bem mais recente na legislação brasileira, não se trata do antônimo de casamento. Antes de 1977, a união matrimonial nos termos da lei era indissolúvel (constitucionalmente inclusive, desde 1934). Em 1901, o Código Civil de Clóvis Beviláqua, previa a dissolução da sociedade conjugal na esfera patrimonial apenas, em casos específicos e sem que se extinguisse o matrimônio, por meio do desquite. Somente em 1977 o divórcio foi instituído, possibilitando a extinção completa de um matrimônio e o novo casamento após a separação. Por fim, apenas com a Constituição de 1988, torna-se livre a quantidade de divórcios e de novos casamentos conforme a necessidade; e somente em 2010, é aprovado o divórcio direto.
A trajetória tardia do divórcio no Brasil demonstra a persistência de uma força reacionária no país, que insiste em defender que tal prática produz “anomias”, conceito de Durkheim para se referir à disfuncionalidade nas sociedades, a qual, ocasionada pela falta de normas de conduta, gera desalinho da ordem e, assim, ameaça à coesão social. Contudo, trata-se de um discurso equivocado, pois é a defesa da indissolubilidade do matrimônio que acoberta diversas “anomias” sociais, como a violência doméstica e a repressão da sexualidade, sobretudo feminina. Isso pois, a instituição do casamento é um pilar fulcral da doutrina cristã, cuja influência fez-se direta, tanto na vida privada quanto pública, durante séculos no Brasil, tendo, inclusive, grande participação no Direito. Desse modo, dada a influência da religião não apenas na fé, mas na legislação, tal fenômeno fora incutido à "consciência coletiva média" como algo sagrado e intocável. Logo, os problemas oriundos da aliança conjugal, isto é, as “anomias” encobertas por ela, eram lidas pela consciência pública, "vigilante" da moral e dos bons costumes, como questões individuais, de natureza psicológica. A exemplo da violência no ambiente doméstico tradicional, a qual era socialmente tolerada, fosse ela vinda do patriarca contra a esposa, que deveria se submeter, segundo a norma sexista, ao arbítrio do marido e estar a serviço dele, fosse dos pais contra os filhos. Ainda, a repressão da sexualidade, tanto feminina, pois a esposa, como escrito por Simone de Beauvoir, “limitada a cozinha e a alcova”, deveria preservar a própria intimidade para o marido, enquanto este tinha maior possibilidade de exercer sua sexualidade livremente fora dos limites domésticos, e até de cometer adultério sem, contudo, ser vítima do mesmo constrangimento destilado contra mulheres adúlteras ou sexualmente livres; quanto das pessoas LGBTQ+ que, por vezes, submetiam-se a casamentos heterocisnormativos a fim de reprimir ou apenas camuflar as verdadeiras identidades, tamanha pressão exercida pela moral intolerante da época na vida particular. Ademais, a ameaça à instituição família em si, posto que a harmonia do casal estrutura esse vínculo, sendo ela determinante para a educação e criação saudável (ou traumática) da prole.
Por fim, nota-se a contradição no discurso conservador, presente no movimento reacionário antidivorcista, que vai de encontro ao funcionalismo, preconizado por Durkheim, da sociedade contemporânea. Isso porque, a defesa da religião como axioma na vida pública e privada, traço típico da solidariedade mecânica, na qual o todo determina de forma direta a ação do sujeito, contraria a natureza da sociedade atual, posto que nesta prevalece a solidariedade orgânica, típica dos grandes grupos cosmopolitas, nos quais o individualismo permite a diminuição da intervenção direta do todo na intimidade, embora este ainda influencie ideologicamente a conduta. Assim, a conquista do divórcio seria um marco na transição da solidariedade orgânica para a mecânica na sociedade brasileira, visto que a intervenção do Estado na vida privada, por intermédio do Direito, em nome de doutrinas, foi substituída pela introjeção de valores à consciência coletiva por meio do discurso, o que demonstra uma adaptação das formas de coerção social à nova realidade técnico-econômica.
Texto 3 (Émile Durkheim)
Laura Xavier de Oliveira - 1° ano - Direito (matutino)
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