Ao pensarmos na atuação do jurista – seja enquanto juiz, advogado, promotor ou legislador – é comum imaginarmos uma figura que opera sob a lógica das leis, guiando-se por códigos e normas como um operador da justiça. No entanto, ao isolar o Direito de outras áreas do conhecimento, sobretudo das Ciências Sociais, corremos o risco de construir um edifício jurídico tecnicamente perfeito, mas socialmente cego. Assim, sendo o Direito um produto do curso da história e da cultura humana como desvinculá-lo das Ciências Sociais? A resposta é que não há como, pois, na realidade, elas são indissociáveis às Ciências Jurídicas.
Nesse sentido, podemos utilizar da metáfora de que as Ciências Sociais funcionam como um microscópio: revelam aquilo que a "lei seca" não diz, mas que a realidade exige que se veja. Tomemos como exemplo o debate sobre o marco temporal das terras indígenas no Brasil: à primeira vista, trata-se de uma questão de interpretação constitucional e meramente tecnicista. Porém, uma leitura sociológica – influenciada pela "imaginação sociológica" de Mills, por exemplo – revela os efeitos históricos da colonização, da marginalização dos povos originários e dos interesses econômicos do agronegócio acima dos interesses da população autóctone. E como esses efeitos somente são revelados a partir da lente das Ciências Sociais, um jurista ignorante a essa perspectiva está fadado a aplicar as normas de modo formalista, reforçando estereótipos e injustiças camufladas na sociedade. É nesse ponto que a crítica do professor português Boaventura de Sousa Santos ao o que ele chama de "monopólio do saber jurídico" nos oferece contribuições essenciais. Para ele, é necessário questionar tal hegemonia jurídica, pois ela ainda se encontra institucionalizada, excluindo, assim, saberes marginalizados da sociedade. Dessa forma, constatamos que aplicar o Direito sem compreender os conflitos humanos pelas lentes das Ciências Sociais, pode nos levar a perpetuar povos e saberes em condição de subalternidade.
Além disso, essa indissociação entre o Direito e Ciências Sociais torna-se ainda mais evidente nas decisões cotidianas que moldam a vida de milhões de pessoas. A seletividade penal brasileira, por exemplo, é prova disso: o encarceramento – ou em casos mais graves, o assassinato – em massa de jovens negros e periféricos por crimes ligados ao tráfico de drogas, muitas vezes sem provas robustas, ilustra como a aplicação aparentemente “técnica” da norma jurídica pode, na prática, reproduzir o racismo estrutural. Assim, essa tecnocracia produz uma ilusão de neutralidade que camufla escolhas políticas, ao tratar a lei como um instrumento meramente técnico e descontextualizado. Sob esse viés, Achille Mbembe, em "Necropolítica", ilustra que certos grupos têm o poder de decidir quem deve viver e quem pode morrer manifestado, por exemplo, em contextos nos quais o sistema jurídico escolhe quem merece proteção e quem pode ser descartado. Portanto, seja pelo sistema carcerário injusto ou pela análise da filósofo camaronês , percebemos, novamente, como as Ciências Sociais não são somente úteis, mas sim imprescindíveis ao jurista.
Por fim, é inegável que a aplicação da norma jurídica sem considerar sua interseccionalidade às Ciências Sociais encaminha a operação da lei a um terreno abstrato e opaco, no qual há o predomínio da técnica em detrimento da realidade social. Nessa lógica, a norma transforma-se num fim em si mesma, descolando-se das realidades que deveria, na verdade, amparar. Assim, o jurista, nesse cenário, ,torna-se apenas um executor burocrático das normas, reproduzindo desigualdades e estereótipos sob o verniz da imparcialidade.
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