Mas as pessoas da sala de jantar são viciadas em nascer e morrer
Émile Durkheim expõe em sua obra “Que é fato social?”
a sua concepção sociológica de organização, estruturação e vicissitude da
sociedade, numa perspectiva de ação do grupo social, de uma entidade composta
de sujeitos, sobre o indivíduo. Isto é: exprime-se uma prevalência da sociedade
sobre os corpos individuais.
Numa perspectiva de racionalidade e de criticidade à
interferência dos sentimentos e aspectos subjetivos na busca da verdade
sociológica, o francês expõe o conceito de fato social, que deve ser observado
como “coisa”: tudo aquilo que independe do indivíduo e que tem como base a ação do homem na sociedade, conforme as
regras sociais e de maneira coercitiva, uma vez que as dissidências ao fato
social são passíveis de sansão social com o intuito de se restabelecer a
norma.
Nesse sentido, há uma causa eficiente que explica
qualquer fato social. Tal causa é um determinado fenômeno que performa certa
função, de modo que a explicação para um fato social encontra-se em outro fato
social, não em disposições individuais. O sociólogo critica, então, a teoria de
que aspectos da sociedade remontam assim o são em razão de perspectivas
pessoais, psíquicas e subjetivas, numa ótica individual. Na realidade, ocorre
que a sociedade, os padrões sociais e tudo o que a envolve se constituem dessa
forma em razão de um motivo conjuntural e coletivo, de forma a manter o
equilíbrio e a coesão social; afinal, a sociedade representa uma consciência coletiva,
não compartimentada individualmente. Nessa mesma linha de pensamento, é notório
que os fatos sociais existem para a manutenção de sua causa (retroalimentação
do sistema).
É válido perceber, nessa toada, que os sentimentos e
percepções comuns são originários de uma dinâmica social que os constroem e os
predispõem; não são frutos da somatória da consciência individual -que provavelmente
é plural, dada a existência e inúmeros participantes de uma sociedade- de cada
integrante do coletivo. Daí nota-se, portanto, a prevalência durkheimniana da
sociedade sobre o indivíduo. Surge-se como exemplo do exposto, a ideologia do
individualismo: é fruto de uma realidade social e de inculcação pelo sistema
educacional nos personagens da sociedade, o que cria um imaginário coletivo,
não individual. Resume-se que o fato social vem antes da ideia do indivíduo, à
titulo de elucidação: enquadra-se o individualismo no fato social.
À luz do exposto, nota-se que os fatos sociais se projetam
no cotidiano dos indivíduos e das coisas: convenções sociais, maneiras de
comportamento, vestimentas e relações interpessoais. Nesse sentido, não se
exclui, portanto, que o modo de se viver pode ser configurado também como um
fato social. Apreciar-se-á o modelo de vida monótono, submisso ao sistema e padronizado, seguindo a criticidade da letra de uma música da Tropicália.
Nessa perspectiva, a canção “Panis et Circences”, dos Mutantes, revela a luta do cantor,
que pode ser compreendido como um indivíduo revolucionário, em abrir o mundo
das pessoas na sala de jantar, que podem ser entendidas como a sociedade,
regida por fatos sociais: monotonia e padronização cega da vida. A sociedade,
satisfeita com o que lhe é dado pelo sistema (personificado nas figuras do pão
e do circo), é coesa dessa maneira, de forma que os fatos sociais apresentados
servem para sustenta-la a fim de evitar a ruptura do coletivo.
No bojo disso, o compositor chega a expor que soltou “os tigres e
os leões no quintal” e que matou o seu amor “às cinco horas na avenida central”,
fatos de grande visibilidade que, numa perspectiva metafórica, evidencia as
ações, do indivíduo contestador do fato social, para modificar o mundo e
quebrar a “harmonia social”; contudo, apesar das ações do indivíduo em
chamar-lhes a atenção, as pessoas (sociedade) são ocupadas em “nascer e morrer”:
vivem numa vida banal, conivente ao sistema e sem aventuras. Reflexão que
revela, inclusive, a sobreposição da sociedade sobre o indivíduo e a força
coercitiva da consciência coletiva. Dessa
forma, o fato social conserva a sociedade da maneira que ela se encontra,
jantando o pão em sua sala de jantar. A dissidência ou é silenciada via
opressão ou ignorada, como o caso do compositor.
Autor: Luiz Henrique Garbellini Filho. Turno:
Diurno. (1 texto somente para Durkheim)
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