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segunda-feira, 19 de maio de 2014

O Iphone, os justiceiros e a sociedade: A função social além da ordem


                Hoje de manhã, ao abrir o Facebook, me deparei com o próprio jornal dos meus amigos e conhecidos - Noam Chomsky preconizava essa criação de “jornais dos indivíduos” através da internet, uma verdadeira revolução. Na página inicial daquela rede social, autointitulada “Feed de notícias”, havia como manchetes um link patrocinado de um candidato presidencial, uma declaração de amor e uma nota digna de classificados ou “achados e perdidos” de um Iphone.
                Vários fatos sociais poderiam ser abstraídos dessas três publicações, porém me chamou atenção a nota da pessoa que achou o Iphone. O post dizia mais ou menos assim: “Achei um Iphone e até queria ficar com ele, mas como tinha rastreador decidi devolver, além disso estava me sentindo mal em ficar com o celular. Achei que era um presente que Deus me mandou de aniversário, mas é difícil destravá-lo. Mas fazer o que, honestidade acima de tudo!”.
O trecho acima foi modificado para manter a privacidade da pessoa e tentou-se preservar algumas marcas de linguagem para maior fidelidade aos fatos. No entanto, é possível notar uma contradição marcante: o sujeito encontra uma propriedade que não lhe pertence, porém é um objeto de desejo. O impasse está na escolha do que é mais importante para o indivíduo, a satisfação material ou moral deste. Caso devolva o celular, terá cumprido um papel de honestidade e solidariedade com o próximo, algo que inclusive a moral cristã em que a pessoa acredita prega. Caso não o devolva, terá negado estas convicções e lesado alguém, porém há uma tentativa de justificar o ato usando a crença, o que ocorreu não teria sido nada mais do que um presente divino, merecido pela data especial.
O conflito interior é resolvido por um mecanismo que traz à tona a função social da lei. O rastreador do dispositivo, mecanismo que busca também assegurar a posse pelo proprietário original, inibe o sujeito de ficar com o celular, mesmo acreditando que “achado não é roubado”, por temer as consequências de ser descoberto. Ressalta-se a “honestidade acima de tudo!” como reafirmação da moral deste indivíduo, porém ressalvada apenas após a percepção dos riscos de se ficar com o objeto. Nem o usucapião foi forte o suficiente diante daquela percepção. É o medo da sanção social se sobrepondo à satisfação material e moral.
Percebem-se como as funções sociais de algumas instituições e as características das sociedades agem sobre os indivíduos, de forma negativa ou positiva. Durkheim entendia que “os modos como as partes constituintes da sociedade se organizam condicionam o funcionamento da vida social” buscando geralmente a coesão social. Porém existem os fatos sociais classificados como normais ou patológicos. Estes últimos são os que se encontram fora dos limites permitidos pela ordem social e pela moral vigentes. Nesta classificação poderia entrar o linchamento? Talvez. Porém, mais do que fora dos limites, os linchamentos seriam uma forma de “justiça popular” contra o que a população julga como patológico. Contudo, tais atos estão à margem da lei, não há um julgamento justo dos acusados, nem chance de defesa, e há a barbárie violenta quando se busca combater outra violência.
Infelizmente também, as redes sociais têm sido usadas para disseminar denúncias de supostos criminosos que se descobre sua inocência após os linchamentos, como observado pelo antropólogo brasileiro José de Souza Martins. Tarde demais. Fazem-se mais vítimas sob a justificativa de uma falsa justiça. Ao linchar uma típica mãe de família como aconteceu no Guarujá, “é como se esta sociedade linchasse um de seus símbolos fundamentais”. O horror aos ritos de linchamentos aumenta pelo medo da “violência injusta e descabida” de que ninguém mais está a salvo quando inocentes são linchados.
Seria um sintoma de uma sociedade “anômica”? Combate-se a violência com mais violência? A função social da punição aos crimes não seria suficiente? Ou a questão é maior, uma crise de valores? Durkheim classifica a solidariedade para coesão social entre mecânica e orgânica. Na mecânica, típica de sociedades simples, divididas em clãs, os indivíduos realizam funções semelhantes, com pouca divisão do trabalho, compartilham dos mesmos valores e crenças, com o social sobreposto ao individual, os interesses materiais são os de subsistência do grupo. Tais características garantem a coesão social. Na orgânica, típica de sociedades complexas, industriais, os interesses individuais são distintos, o direito que garante a coesão social, o trabalho é especializado e dividido, sendo a divisão social do trabalho causa do aumento da interdependência entre os indivíduos. Porém, Bauman observa uma falta de identificação dos indivíduos com as instituições sociais presente na sociedade capitalista liberal atual, centrada no consumismo.
Apesar da interdependência entre as pessoas, a sociedade rápida, em que o tempo é dinheiro, tudo se compra e se vende, a desigualdade é um problema persistente. A falta de valores compartilhados e de significado para a vida, resumida em ganhar dinheiro para sobreviver, amplifica o descontentamento com estados já falhos na defesa de quem deveria proteger, seu povo. Interesses particulares são prioritários e opostos à redução da desigualdade. Como disse José de Souza Martins, há inclusão do sujeito no mercado, mas exclusão social. Ele não se sente parte do todo, está às margens da sociedade.
O fenômeno não ocorre apenas nas periferias, com a exteriorização da indignação do indivíduo com crimes crescentes e sem solução na forma dos linchamentos. Entra governo, sai governo, o povo sente-se lesado com sistemas de saúde, educação e segurança pública falhos. Mais recentemente, o transporte público originou as “Manifestações de Junho” que exteriorizaram o sentimento de “não aguento mais” da população. “Não aguento mais corrupção, não aguento mais fila no SUS, não aguento mais ser assaltado e morto por 50 reais”.
Mas por que a explosão só aconteceu agora? As redes sociais propagaram ao redor do mundo a indignação dos povos, cansados de serem explorados. Há mais pessoas letradas e conscientes da necessidade de mudanças, o que seria ao menos um mérito para alguns governos. Contudo, não é o bastante. Querem mais mudanças em menos tempos. A proliferação de grupos sociais provoca mais demandas que creem em diferentes soluções. Ninguém quer ceder, de nenhum lado. Fala-se em soluções radicais, tanto de direita quanto de esquerda. Ou com valores baseados em crenças ou ideais. O que se percebe, no entanto, é que há o esgotamento de valores que se mostraram corrompidos e corruptores.
Buscar a solução não se trata de resgatar a tradição das famílias ou das Igrejas. Nem dominar as classes dominadoras, numa eterna luta de classes. Trata-se da consciência coletiva criada pela educação, em casa e nas escolas, com o exemplo ético dos cidadãos, aplicando o que realmente funciona para diminuir a desigualdade. A função social do Estado, das instituições e da própria economia, quando aliados, permite não apenas a coesão social, mas um funcionamento da sociedade que proporciona mais identificação com os indivíduos e mais significado para a vida deles, resguardando sua liberdade individual, sem necessidade de poderes paralelos, injustos, e distorções da moral.

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