Hoje
de manhã, ao abrir o Facebook, me deparei com o próprio jornal dos meus amigos
e conhecidos - Noam Chomsky preconizava essa criação de “jornais dos
indivíduos” através da internet, uma verdadeira revolução. Na página inicial
daquela rede social, autointitulada “Feed de notícias”, havia como manchetes um
link patrocinado de um candidato presidencial, uma declaração de amor e uma
nota digna de classificados ou “achados e perdidos” de um Iphone.
Vários
fatos sociais poderiam ser abstraídos dessas três publicações, porém me chamou
atenção a nota da pessoa que achou o Iphone. O post dizia mais ou menos assim:
“Achei um Iphone e até queria ficar com ele, mas como tinha rastreador decidi
devolver, além disso estava me sentindo mal em ficar com o celular. Achei que
era um presente que Deus me mandou de aniversário, mas é difícil destravá-lo.
Mas fazer o que, honestidade acima de tudo!”.
O trecho acima
foi modificado para manter a privacidade da pessoa e tentou-se preservar
algumas marcas de linguagem para maior fidelidade aos fatos. No entanto, é
possível notar uma contradição marcante: o sujeito encontra uma propriedade que
não lhe pertence, porém é um objeto de desejo. O impasse está na escolha do que
é mais importante para o indivíduo, a satisfação material ou moral deste. Caso
devolva o celular, terá cumprido um papel de honestidade e solidariedade com o
próximo, algo que inclusive a moral cristã em que a pessoa acredita prega. Caso
não o devolva, terá negado estas convicções e lesado alguém, porém há uma tentativa
de justificar o ato usando a crença, o que ocorreu não teria sido nada mais do
que um presente divino, merecido pela data especial.
O conflito
interior é resolvido por um mecanismo que traz à tona a função social da lei. O
rastreador do dispositivo, mecanismo que busca também assegurar a posse pelo
proprietário original, inibe o sujeito de ficar com o celular, mesmo
acreditando que “achado não é roubado”, por temer as consequências de ser
descoberto. Ressalta-se a “honestidade acima de tudo!” como reafirmação da
moral deste indivíduo, porém ressalvada apenas após a percepção dos riscos de
se ficar com o objeto. Nem o usucapião foi forte o suficiente diante daquela
percepção. É o medo da sanção social se sobrepondo à satisfação material e
moral.
Percebem-se
como as funções sociais de algumas instituições e as características das
sociedades agem sobre os indivíduos, de forma negativa ou positiva. Durkheim
entendia que “os modos como as partes constituintes da sociedade se organizam
condicionam o funcionamento da vida social” buscando geralmente a coesão
social. Porém existem os fatos sociais classificados como normais ou patológicos.
Estes últimos são os que se encontram fora dos limites permitidos pela ordem
social e pela moral vigentes. Nesta classificação poderia entrar o linchamento?
Talvez. Porém, mais do que fora dos limites, os linchamentos seriam uma forma
de “justiça popular” contra o que a população julga como patológico. Contudo,
tais atos estão à margem da lei, não há um julgamento justo dos acusados, nem
chance de defesa, e há a barbárie violenta quando se busca combater outra
violência.
Infelizmente
também, as redes sociais têm sido usadas para disseminar denúncias de supostos
criminosos que se descobre sua inocência após os linchamentos, como observado
pelo antropólogo brasileiro José de Souza Martins. Tarde demais. Fazem-se mais
vítimas sob a justificativa de uma falsa justiça. Ao linchar uma típica mãe de
família como aconteceu no Guarujá, “é como se esta sociedade linchasse um de
seus símbolos fundamentais”. O horror aos ritos de linchamentos aumenta pelo
medo da “violência injusta e descabida” de que ninguém mais está a salvo quando
inocentes são linchados.
Seria um sintoma
de uma sociedade “anômica”? Combate-se a violência com mais violência? A função
social da punição aos crimes não seria suficiente? Ou a questão é maior, uma
crise de valores? Durkheim classifica a solidariedade para coesão social entre
mecânica e orgânica. Na mecânica, típica de sociedades simples, divididas em
clãs, os indivíduos realizam funções semelhantes, com pouca divisão do
trabalho, compartilham dos mesmos valores e crenças, com o social sobreposto ao
individual, os interesses materiais são os de subsistência do grupo. Tais
características garantem a coesão social. Na orgânica, típica de sociedades
complexas, industriais, os interesses individuais são distintos, o direito que
garante a coesão social, o trabalho é especializado e dividido, sendo a divisão
social do trabalho causa do aumento da interdependência entre os indivíduos. Porém,
Bauman observa uma falta de identificação dos indivíduos com as instituições
sociais presente na sociedade capitalista liberal atual, centrada no consumismo.
Apesar da
interdependência entre as pessoas, a sociedade rápida, em que o tempo é
dinheiro, tudo se compra e se vende, a desigualdade é um problema persistente.
A falta de valores compartilhados e de significado para a vida, resumida em
ganhar dinheiro para sobreviver, amplifica o descontentamento com estados já
falhos na defesa de quem deveria proteger, seu povo. Interesses particulares
são prioritários e opostos à redução da desigualdade. Como disse José de Souza
Martins, há inclusão do sujeito no mercado, mas exclusão social. Ele não se
sente parte do todo, está às margens da sociedade.
O fenômeno não
ocorre apenas nas periferias, com a exteriorização da indignação do indivíduo
com crimes crescentes e sem solução na forma dos linchamentos. Entra governo,
sai governo, o povo sente-se lesado com sistemas de saúde, educação e segurança
pública falhos. Mais recentemente, o transporte público originou as “Manifestações
de Junho” que exteriorizaram o sentimento de “não aguento mais” da população. “Não
aguento mais corrupção, não aguento mais fila no SUS, não aguento mais ser
assaltado e morto por 50 reais”.
Mas por que a
explosão só aconteceu agora? As redes sociais propagaram ao redor do mundo a
indignação dos povos, cansados de serem explorados. Há mais pessoas letradas e
conscientes da necessidade de mudanças, o que seria ao menos um mérito para
alguns governos. Contudo, não é o bastante. Querem mais mudanças em menos
tempos. A proliferação de grupos sociais provoca mais demandas que creem em
diferentes soluções. Ninguém quer ceder, de nenhum lado. Fala-se em soluções
radicais, tanto de direita quanto de esquerda. Ou com valores baseados em
crenças ou ideais. O que se percebe, no entanto, é que há o esgotamento de
valores que se mostraram corrompidos e corruptores.
Buscar a
solução não se trata de resgatar a tradição das famílias ou das Igrejas. Nem
dominar as classes dominadoras, numa eterna luta de classes. Trata-se da
consciência coletiva criada pela educação, em casa e nas escolas, com o exemplo
ético dos cidadãos, aplicando o que realmente funciona para diminuir a desigualdade.
A função social do Estado, das instituições e da própria economia, quando
aliados, permite não apenas a coesão social, mas um funcionamento da sociedade
que proporciona mais identificação com os indivíduos e mais significado para a
vida deles, resguardando sua liberdade individual, sem necessidade de poderes
paralelos, injustos, e distorções da moral.
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