"Temos
o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que
não produza, alimente ou reproduza as desigualdades” (SANTOS, Boaventura Sousa.
Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, pg. 56)
Se
alguém lhe mostrar a imagem de duas mulheres – uma loira, alta e magra e uma
negra, baixa e meio gordinha – e dizer que ali estão uma médica e uma
doméstica, qual delas você pensaria que é médica ou doméstica? Se alguém lhe
mostrar a imagem de dois homens, um branco e um negro, – ambos de terno – qual
deles você dirá que é juiz e qual o recepcionista de um restaurante?
No
Brasil há uma falsa ideia da consolidação de uma “democracia racial”, ou seja,
o país supostamente não possui o racismo ou discriminação racial visto em
outros países, por exemplo, os Estados Unidos. Tal pensamento, no entanto, é
facilmente desconstruído observando os setores socioeconômicos que constituem a
população brasileira e a disparidade entre brancos e negros nesses setores. Uma
pesquisa feita em 1999 pelo IPEA constatou que dos 53 milhões de pobres do
país, cerca de 64% eram negros. Tal estratificação da população gera uma
espécie de senso comum que associa a aparência ao socioeconômico e a partir
disso, segrega parcelas inteiras. Zygmunt Bauman em seu livro “44 cartas ao
mundo líquido moderno” afirma que em espaços homogeneizados, é “difícil
adquirir as qualidades de caráter e as destrezas necessárias para confrontar as
diferenças entre seres humanos e as situações de incerteza, razão pela qual a
inclinação predominante é “temer o outro, pela simples razão de ser outro”. Ou
seja, automaticamente a ideia de emancipação social e miscigenação é algo visto
com repulsa, fenômeno chamado por Boaventura de Sousa Santos de fascismo
contratualista e apartheid social, econômico e territorial.
Segundo o portal Geledés, “as cotas não são uma vantagem: são a correção de
uma desvantagem histórica. Antes delas, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros
tinham concluído universidade no Brasil; após as cotas, este número subiu para
11% de pardos e 8,8% de negros. Ainda é pouco, já que eles são 53% na
população. Em Medicina, por exemplo, somente 0,9% dos formandos no Estado de São Paulo em 2014 eram
negros.” Onde está a democracia racial nesses dados? Quem são então os
profissionais que lidarão diretamente com as questões sobre desigualdade em
nosso país? Eles possuem “as qualidades de caráter e as destrezas necessárias
para confrontar as diferenças entre seres humanos”? O direito, ciência vista
como justa por si, não seria apenas mais uma instituição elitizada com
profissionais, em sua maioria, alheios à realidade da maior parcela da
população?
Em conformidade
com tais reflexões, podemos destacar um exemplo pungente do descaso para com
essa realidade institucionalizada e veladamente discriminante: Após instituir
um sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial no processo
de seleção, a UNB (Universidade Nacional de Brasília) foi alvo de uma ADPF
(arguição de descumprimento de preceito fundamental) ajuizada pelo partido Democratas (DEM). O partido,
por sua vez, mobilizou o mesmo argumento da democracia racial, afirmando que o
Estado é plural e não seria justo com outros candidatos, que os beneficiados
por cotas adentrassem o curso superior. Sobre as ações afirmativas, Katherine
Smits, teórica política, em seu livro “Applying Political Theory – Issues and
Debates” diz: “Preferências de grupos não equivalem à discriminação de grupos,
e isso deve ser levado em consideração no vasto contexto em que as preferências
raciais e de gênero são aplicadas. Ademais, as preferências de grupos não
comprometem a equidade, pois os indivíduos não têm direitos automáticos a
quaisquer benefícios em decorrência de seus talentos naturais e habilidades. É
tarefa da sociedade distribuir benefícios de acordo com critérios razoáveis e
publicamente justificados conforme objetivos sociais mais amplos”.
Boaventura,
ao abordar a teoria do pós-contratualismo, processo por meio do qual, grupos e
interesses sociais incluídos totalmente em outro momento no contrato social,
começam a ver-se excluídos deste sem qualquer perspectiva de regresso; acaba
por mostrar um dos motivos pelos quais o DEM se propôs a suspender o direito de
cotistas já aprovados. O medo da sociedade civil íntima de ver o outro,
proveniente da sociedade incivil, que teve historicamente seus direitos negados
e suprimidos frequentando o mesmo espaço – que outrora legitimava a exclusão e
a manutenção do status quo – a universidade, não é um medo só do outro, é
também o medo da mudança, da formação de profissionais que apoiam a ecologia
dos saberes, o confrontamento ao racismo social e principalmente, a emancipação
do direito e a partir dela, das instituições públicas e do Estado.
Não
vivemos em uma “democracia racial” e por vivermos em uma democracia, devemos
superar a concepção estratificada de igualdade, pois ela não é um direito
garantido a toda uma sociedade. A igualdade é, na verdade, uma possibilidade e
o direito emancipatório, munido de ações afirmativas e de profissionais conscientes e humanizados é um meio para que a sociedade em sua totalidade, superesuas desigualdades na realidade fática.
Mariana Ferreira Figueiredo
Direito (diurno) - 1º ano
Sociologia do Direito
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