"O
pai de Matilda tinha cabelos pretos que usava repartidos no meio e dos quais
tinha muito orgulho.
-
Cabelos bons e fortes significam que há um cérebro bom e forte por baixo - ele
dizia.
-
Como Shakespeare - Matilda comentou certa vez.
-
Como quem?
-
Shakespeare, papai.
- Ele
era inteligente?
-
Muito, pai.
- E
ele tinha muito cabelo, não é?
- Ele
era careca, pai."
Matilda é a criança prodígio que
protagoniza o romance infanto juvenil homônimo escrito pelo britânico Roald Dahl.
Trata-se da filha mais nova de um casal repleto de vícios em questões morais,
como vigarices financeiras, jogos de azar, dentre outras atitudes certamente
reprováveis. Matilda é autodidata e absurdamente cedo aprende a ler; consome
avidamente os livros da biblioteca de seu bairro. Como sua habilidade de
leitura, também sua capacidade de discernimento do mundo à sua volta é precoce.
Logo começa a repudiar o comportamento padrão que a cerca, tornando-se um indivíduo
crítico em relação a sua família e escola - seu meio social. Sentindo-se no
dever de militar contra os preconceitos, as ideologias vis e as opressões - físicas
e psicológicas - Matilda dá início à trama que envolve, em suma, um indivíduo
que, por se utilizar de um método racional, rompe com os grilhões do seu meio a
fim de revolucionar a consciência dos que a cercam.
Guardadas as devidas proporções,
pode-se certamente afirmar que há um pouco de Descartes na trama de Matilda.
Embora para esta a questão moral tenha uma relevância superior do que àquele,
ambos parecem ser movidos por um mesmo combustível. Descartes viu-se num
universo impregnado por mitos, dogmas e pseudociências. Não sentiu, nos bancos
escolares, a solidez que um conteúdo científico transmite. Da mesma forma,
Matilda também estava inserida em um contexto de repressão, ideologias
infundadas e nos bancos escolares conhecia metodologias absurdas. A
superioridade das instituições que cercavam tanto Matilda quanto Descartes era
justificada por argumentos infundados, que tinham por objetivo apenas a
manutenção do status vigente.
Matilda rebelou-se. Enquanto
seus pais ofereciam-lhe horas de contemplação à televisão como forma de satisfação
cultural, a menina foi à biblioteca e desenvolveu, à luz de sua própria razão,
seu senso crítico e seu conhecimento do mundo. Era o conhecimento
revelado pela emissora que era substituído pela construção autodidata da
criança. Descartes, por
sua vez, teve audácia semelhante ao rejeitar as pseudociências de seu
tempo, e trocou o culto às verdades insofismáveis pelo método científico
racional. Matilda ousou questionar a autoridade da sua instituição de ensino,
da mesma forma que Descartes rejeitou a ciência que os filósofos ancestrais lhe
transmitiam através de seus instrutores.
Descartes
e Matilda são, pois, movidos pelo mesmo sentimento. Esse espírito da busca pela
verdade científica e pelo conhecimento racional é, portanto, universal. É por
esse motivo que a obra de Descartes faz-se válida por todos os séculos que
atravessou: porque romper com dogmas e desvelá-los pela razão é uma atividade
constante em todos os tempos. Dahl acaba buscando, com sua obra, despertar esse
espírito crítico, latente no ser humano, logo que as crianças possam
interessar-se pela leitura.
A
Astrologia, a Religião, dentre outras ciências creditadas na era de Descartes
não morreram por completo. Exilaram-se em algum lugar a fim de distanciar-se
das mentes que ganharam força suficiente para enfrentá-las. Da mesma forma, no
romance de Dahl, Matilda, com a ajuda da habilidade telecinética, conseguiu manter
distantes as pessoas que tentaram lhe impor uma ordem irracional, de forma a
revolucionar para sempre a vida das pessoas que lhe rodeavam.
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