2 - A política e o Direito: possibilidades da racionalização na contemporaneidade
A experiência grega tem uma novidade importante na história do Direito: a promulgação da lei e sua revogação nada têm de divino, são assuntos humanos. Apesar do forte caráter mítico e religioso da sociedade grega, o direito já não precisa ser revelado divinamente para valer e nem é preciso invocar a vontade dos deuses para deliberar sobre as leis. Nestes termos, é que se pode dizer que o direito se laiciza. A impiedade, o desrespeito aos deuses e à religião ainda são crimes, mas o que é particularmente relevante é que entre o direito "dos deuses" e o direito "dos homens" abre-se uma fenda, pela qual transitará a cultura clássica.
A Antígona de Sófocles, por exemplo, evidencia o conflito entre a questão religiosa e o direito. Antígona enfrenta as leis dos homens e justifica o seu ato declarando ter obedecido às leis divinas, leis não escritas, leis eternas, reveladas à sua consciência, que devem sempre prevalecer. (“Porque não foi Zeus quem a ditou, nem foi a que vive com os deuses subterrâneos- a Justiça- quem aos homens deu tais normas. Nem nas tuas ordens reconheço força que a um mortal permita violar aquelas não escritas e intangíveis leis dos deuses. Estas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; ninguém sabe quando foram promulgadas. A elas não a quem, por temor, me fizesse transgredir, e então prestar contas ao Numes.”- Antígona de Sófocles).
Na Grécia Antiga a vida social não se diferenciava do exercício da política, ser livre era fazer parte da vida política na politeia. Durante a Idade Média o homem político é substituído pelo homem crente, e o espaço político é toda a cristandade. Não raro as normas religiosas entravam em conflito com o direito mercantil, como é o caso da condenação, por parte da igreja, da usura, importante fonte de lucro na época. Assim, o direito sacro impregnou por muito tempo áreas específicas do direito.
O renascimento, na Idade Moderna, afronta ao universalismo cristão. Nasce, por exemplo, o princípio da legalidade do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Foi o advento da Revolução Francesa que marcou a cisão entre essas duas esferas. No Estado absoluto o direito era costumeiro (não havia concepção de lei), já no Estado Liberal a lei é a expressão da razão, é destinada a todos e não prevê fatos específicos.
É com base nessa retrospectiva na história que Max weber afirma que tanto no direito antigo como no direito moderno prevalece a verdade relativa, correlacionada meramente aos termos processuais, sendo a ideia da contestação racional por meio de provas, indícios, ou depoimento testemunhal relativamente recente no direito, uma vez que por muito tempo perdurou a ideia do sagrado e do sobrenatural no campo jurídico.
Ainda hoje, percebemos a caminhada do Direito em busca da racionalização, que levaria a impessoalidade buscada por Weber. Um exemplo disso são os posicionamentos divergentes da Igreja Católica e do direito em relação ao aborto e a união homoafetiva. Em 2009, o caso do arcebispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho, que decidiu excomungar a mãe de uma menina e os médicos responsáveis por um aborto, teve repercussão dentro e fora do país. A menina, de apenas nove anos, engravidou de gêmeos, depois de ter sido estuprada pelo padrasto. "É muito, muito delicado, mas a Igreja nunca pode trair o seu anúncio, que é defender a vida desde a concepção até à morte natural, mesmo em face de um drama humano tão forte como o da violência de uma criança", disse o padre Gianfranco Grieco, chefe do departamento do Conselho Pontifício para a Família do Vaticano. Dom José Cardoso Sobrinho chegou a alegar que, aos olhos da Igreja Católica, o aborto era um "crime" e que a lei de Deus estava "acima" dos homens.
Do mesmo modo, a decisão favorável à união estável homoafetiva, que dá aos homossexuais os mesmos direitos de casais heterossexuais, anunciado pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), neste ano de 2011, também foi vítima de críticas da Igreja. "A definição do que é uma família não nasce do voto ou da opinião de um grupo majoritário. É algo de direito natural, está inscrito na própria condição humana", afirmou d. Orani João Tempesta, arcebispo do Rio. D. Orani ressaltou que a Igreja Católica não é contrária aos "legítimos direitos das pessoas". Contudo, não seria possível admitir a equiparação legal com o casamento heterossexual, com o consequente reconhecimento dos direitos associados a uma família tradicional.
Cabe ressaltar que esse não é um consenso nem mesmo dentro da Igreja católica. Luís Corrêa Lima, jesuíta e historiador, afirmou em artigo publicado em “O Globo”, em 2008, que “à primeira vista, esta aprovação da união civil soa como uma divergência radical em relação ao papa. Afinal, a imagem de Bento 16 frequentemente é associada a conservadorismo ou intransigência. Mas as coisas não são bem assim. De fato, o papa defende com veemência o termo ‘matrimônio’ reservado à união heterossexual. Para ele, a verdade do matrimônio implica a realidade sexualmente diferenciada do homem e da mulher, com as suas exigências de complementaridade. [...] Quanto à união civil homoafetiva, o tom de Bento 16 é diferente. Ele tratou do assunto em um discurso a autoridades italianas no início de 2007. O papa ressaltava a importância de se ajudar materialmente as novas gerações a constituírem família e a terem filhos, enfrentando o sério problema da natalidade muito baixa na Itália. Neste contexto, referiu-se indiretamente ao reconhecimento jurídico das uniões gays. Tal reconhecimento enfraqueceria e desestabilizaria a família fundada no matrimônio. Por isso, ele ‘parece perigoso e contraproducente’. Convém analisar os termos usados: ‘parece' não quer dizer necessariamente que seja; ‘perigoso' não significa abominável nem inadmissível. O fogo é perigoso. Pode produzir incêndio e morte. Mas com o devido cuidado, pode ser usado na cozinha de uma residência. Portanto, os termos do papa não são taxativos e nem encerram o debate”.
Exemplos como esses nos mostram que não é preciso ir muito longe para reconhecer a influência dos fatores morais e religiosos no Direito. O mundo ocidental também possui heranças vinculadas ao sagrado, não tão marcantes como as tradições islâmicas, por exemplo, que conservam práticas como o apedrejamento de mulheres que cometeram adultério, não levando em conta os Direitos Humanos Fundamentais, que deveriam abranger a todos. No entanto, além da questão religiosa, misturam-se também, questões culturais e morais, que variam de acordo com cada sociedade, o que dificulta a formação de parâmetros para a criação de normas que vinculem todos e garantam a existências de direitos universais. Gerando a dúvida de até que ponto deve-se considerar as particularidades e pessoalidades dos indivíduos, para que elas não interfiram nos mecanismos que garantem a emancipação e liberdade do todo.
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