Há quase cinco anos, em 2019, foi lançado um
documentário denominado “Vidas entregues”. Um curta-metragem que traz à
tona uma discussão sobre as condições precárias às quais são submetidos os
entregadores de aplicativo, que vão desde “salários” baixos até a ausência de
qualquer amparo legal - sem carteira assinada, não têm salário fixo, 13º, FGTS
nem qualquer convênio de saúde. A produção acompanha depoimentos de diferentes
pessoas de todos os gêneros, idades, qualificações, que, desempregadas, viram
nas entregas por aplicativo uma alternativa de sustento, mas acabaram amarradas
a um sistema às margens dos direitos trabalhistas, ficando à própria sorte,
vivendo um dia por vez, uma entrega de cada vez. Em determinado ponto, é
relatado, por exemplo, que em caso de acidente de trânsito – ainda que
decorrente da atividade laboral - os trabalhadores desse grupo não têm direito
a seguro e, cessada a principal fonte de renda, as famílias deparam-se com
situações financeiramente delicadas. Além disso, caso a entrega não se
concretizasse, muitos apps transferiam os custos para o entregador, que agora
vê suas taxas utilizadas para pagar o prejuízo da empresa. Uma demonstração simples
e fática do instituto predatório das “inovações” trabalhistas de nosso tempo, que
asfixiam o lado mais hipossuficiente das relações de trabalho.
Entretanto, destaca-se que esse cenário não é
exclusivo do setor de delivery, pelo contrário. A precarização do
trabalho tem sido a regra adotada pelo sistema na contemporaneidade para
potencializar os lucros (uberização, pejotização, etc), a qualquer custo – a ser
pago exclusiva, indiscriminada e impositivamente pelo proletariado. Nesse
sentido, para legitimar as arbitrariedades dessa conduta, propagou-se,
inclusive nas camadas sociais mais pobres, a bandeira “Menos direitos e mais
empregos” – que mais tarde, para olhares mais críticos, viria a revelar a
verdadeira intenção por detrás desse “grito”, bem como de onde provinham as
vozes que inicialmente pregavam esse discurso. A campanha massiva conta os
direitos trabalhistas logrou em colocar (ou no mínimo assegurar a passividade) o
Brasil em índices altíssimos de Desemprego Crônico – somados desempregados e
empregados informais, este último cada vez mais adotado no mercado profissional,
o país atingiu uma taxa de quase metade de sua população produtiva.
Nesses
termos, nas palavras de Wood (2007) “os trabalhadores despossuídos da
propriedade de seus meios de produção estão forçados a vender sua força de
trabalho por um salário para conseguir acessar a ditos médios e procurar sua
subsistência”. Isso significaria dizer que, transpondo para a situação
trabalhista atual, os trabalhadores não têm a “opção” de não trabalhar sob tais
circunstâncias, pois uma vez alienados dos processos de produção e não detendo
os recursos básicos de subsistência – estes apoderados pelo capital - não têm
escolha senão a de se sujeitarem às condições preestabelecidas pela classe
economicamente dominante para conseguirem, muitas vezes, somente o necessário
para sobreviverem.
À
vista disso, em um sistema voltado à infinita maximização e acumulação de
Capital, “Toda prática humana que possa ser convertida em mercadoria deixa de
ser acessível ao poder democrático” (WOOD, 2007), por conseguinte, inclusive e
principalmente, os meios inerentes à sobrevivência dos indivíduos tornaram-se
mais uma oportunidade de lucro e exploração. A exemplo disso podemos citar a
questão da moradia, a qual tem saído cada vez mais cara na conta da população
mais vulnerável, reflexos de processos de especulação imobiliária agressiva e
gentrificação. Vale destacar que, na medida em que uma pessoa não possui
autonomia sobre as condições materiais (moradia, alimento, etc), mais
suscetível esta fica à pressão exercida pelos tentáculos do sistema, que as
sufoca e espremem até que a última gota de vitalidade seja extraída.
Assim, população fica à mercê de empregos em situações
precárias e draconianas, distanciadas de quaisquer garantias ou proteção dos
direitos básicos da categoria, sentindo na pele o sofrimento e impotência, sem
enxergar claramente, contudo, de onde estão partindo “os socos”. Esse cenário
torna-se duplamente preocupante, pois, uma vez que imersa no individualismo e
consumismo propagado pelo próprio sistema que a subjuga, a população mais pobre
torna-se apolitizada. Ocupadas demais em tentar sobreviver nessa rede selvagem
de dominação e exploração degenerada, as pessoas acabam vulneráveis, ainda, aos
discursos de ódio da extrema direita, alienando-se socialmente. Como resultado,
surgem dificuldades na mobilização e formação de identidade coletiva e
uníssona.
Ante
o exposto, considerando que as próprias desigualdades representam relações
assimétricas de poder, verifica-se necessário, para além do capital e dos
discursos políticos, analisar uma técnica de atuação na busca de uma
conexão/vinculação estratégica entre o Direito e as ações sociais. É preciso enxergar
o Direito como um meio de luta útil, uma importante ferramenta de resistência
contra a fragilização do trabalho.
Contudo, não seria proveitoso considerar o Direito única e
exclusivamente como o conjunto de normas (positivado), em lugar disso, deve-se pensar
no direito difuso, aquele que permeia as camadas sociais na forma de um direito
versátil e compreensível que seja propagado e difundido nos grupos de
resistência e nas ações políticas, visando mudanças sociais, efetivação de
direitos e conquista de novos ou, minimamente, estancar os prejuízos oriundos dos
esquemas trabalhistas discricionários do sistema econômico.
RUTH F. O. SILVA
1º Ano de Direito - Noturno
REFERÊNCIA:
WOOD,
Ellen Meiksins. Capitalismo e democracia. In: BORON, Atilio A. et al (comp.). A
teoria marxista hoje Problemas e perspectivas. Buenos Aires: Clacso, Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2007. p. 418 e 423. Disponível em:
https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/handle/CLACSO/14505. Acesso em: 28
maio 2024.