Nas minhas últimas leituras — Sociologia de Comte, Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano e, por fim, o artigo Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina, de Aníbal Quijano, que foi o que instigou a reflexão que originou esta postagem — me vi confrontando, mais uma vez, a presença do positivismo como matriz dominante na produção de conhecimento.
Comecei a me perguntar — neutralidade para quem? Progresso para quem? E quem fica de fora quando escolhemos um só caminho como legítimo?
Essas perguntas me levaram a revisitar o pensamento de Auguste Comte, o pai do positivismo, e a contrastá-lo com as críticas de Grada Kilomba e Aníbal Quijano. Foi nesse encontro entre textos, memórias e afetos que surgiu o ponto de partida para essa reflexão.
Comte acreditava que a humanidade passaria por três estágios: o teológico (dominado pela fé), o metafísico (dominado pela filosofia) e, finalmente, o positivo — regido pela ciência. Para ele, apenas a ciência poderia conduzir a sociedade à ordem e ao progresso. A ciência deveria substituir a religião e até organizar moralmente a sociedade.
Essa crença no poder redentor da ciência me parece cada vez mais um ato de fé moderno — mas uma fé travestida de neutralidade. O que Comte chamou de “positividade” era, no fundo, um projeto de totalização: um saber universal que desconsidera histórias, corpos e territórios que não se encaixam na lógica do laboratório e da estatística.
Foi Grada Kilomba quem me ensinou a nomear o incômodo: o que se exclui quando se escolhe a ciência como única linguagem do saber? Ela mostra como a “objetividade” científica foi construída como um espaço de exclusão racial, apagando as vozes negras e indígenas. O positivismo, ao rejeitar o corpo, a emoção e a oralidade, deslegitima modos de saber não brancos. “A violência do epistemicídio está em dizer que o seu saber não é saber, que sua fala não é fala, que sua memória não é memória.”
Aníbal Quijano aprofunda essa crítica ao mostrar que o saber científico moderno, longe de ser universal, é parte do projeto colonial da modernidade. O positivismo comtiano surge exatamente quando a Europa consolida seu domínio global, sendo sua suposta “neutralidade” um instrumento de colonialidade, invisibilizando outras cosmologias.
Ao pensar com Kilomba e Quijano, me dou conta de que criticar o positivismo não é rejeitar a ciência — é recusar o privilégio de um único saber em detrimento de todos os outros. É reconhecer que a objetividade é um ponto de vista que se pretende sem corpo, sem história, sem lugar — e isso, por si só, já é uma ilusão.
Descolonizar o saber, nesse contexto, é um ato de insurgência. É dizer que a racionalidade não é exclusiva do Ocidente, e que há outros modos de compreender, viver e transformar o mundo. É também admitir que o projeto comtiano de “ordem e progresso” foi, para muitos povos, um projeto de desordem e destruição.
Talvez a pergunta mais honesta que possamos fazer hoje não seja “qual o melhor método?”, mas sim: quem é autorizado a conhecer? E quem ainda não pôde falar?
-Elisama S. Braga, 1º período Direito Matutino.
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