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domingo, 13 de abril de 2025

Chip Funcional (Funcionalismo)

 — Bom dia, Setor XLII! Estão prontos para mais um dia gloriosamente funcional? — O despertador emitia uma gravação.

Desde que os chips motivacionais foram implantados em todos, era impossível não acordar entusiasmado— mesmo que o entusiasmo fosse falso e fabricado em laboratório.

Júlio piscou devagar. O chip piscou de volta. Sincronizados.

Levantou-se, escovou os dentes com a escova automatizada (três minutos cravados, como mandava o Manual de Eficiência Pessoal), vestiu seu macacão cinza-névoa (a cor neutra universal, aprovada pelo Comitê de Eficiência Visual) e sentou-se à mesa. O café da manhã já estava servido: uma barra nutritiva sabor “alegria homogênea” e um suco de vitaminas com gosto de... nada. Afinal, gostos pessoais atrasavam o sistema digestivo, segundo o último relatório do Instituto Nacional de Digestão Eficiente.

— Bom dia, Júlio — disse sua esposa, Clara, sem levantar os olhos do tablet instrucional. — Dormiu com 92,7% de eficiência. Parabéns.

— Obrigado. Você também. Vi na estatística do seu ronco que foi exemplar.

Silêncio. Mastigavam suas barras de alegria homogênea com a disciplina de quem entende seu lugar no organismo social.

Júlio partiu para o trabalho. No caminho, um anúncio holográfico brilhava no céu:

"Seja a engrenagem que move o mundo. Sonhar é desperdício energético!"

Ele sorriu. Mais por reflexo do chip do que por sentimento. No elevador, encontrou Roberto, do Setor XX(Engrenagens Leves).

— E aí, tudo funcional? — perguntou Júlio.

— Sempre, irmão. Meus batimentos cardíacos ficaram perfeitamente dentro da curva ontem. Que sensação de utilidade plena!

— Que inveja! Eu tive um pico de adrenalina às 0h56... pensei, por um segundo, em... viajar.

Roberto arregalou os olhos.

— Viajar?

— Mas foi rápido! Já reportei ao Centro de Correção de Vontades. Disseram que em 48 horas o chip recalibra.

— Melhor assim. Pensar por conta própria? Cuidado, hein. Isso é praticamente obstrução sistêmica.

Júlio assentiu, envergonhado. “Viajar”, ele repetia mentalmente. Que palavra estranha... de onde será que tinha tirado isso?

O dia correu como sempre: cálculos, gráficos, resultados. Nenhum erro. Nenhuma surpresa. Nenhuma dúvida.

À noite, no sofá, ele e Clara assistiam ao programa “Heróis da Eficiência”, onde cidadãos exemplares eram premiados com cinco minutos de sono extra. Ela o olhou e disse:

— Você está bem?

— Estou... ótimo.

— Não teve outro pensamento disfuncional, teve?

Ele hesitou. Olhou para a parede. Para o teto. Para dentro.

— Não. Claro que não.

E sorriu. Pela primeira vez, o chip não acompanhou.


Maria Helena-Noturno, primeiro ano.

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