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domingo, 27 de junho de 2021

“Sentir o universo é um trabalho interior”.

        A frase a que me refiro no título aparece no filme “Ponto de Mutação”, dirigido por Bernst Capra e desenvolvido a partir do livro “The Turning Point” de Fritjof Capra. No filme, acompanhei o raciocínio das três personagens: a cientista – a qual discorda da visão mecanicista da ciência defendida por Descartes -, o político – que, por um lado, concorda com o pensamento cartesiano - e o poeta –  o qual tem uma visão subjetiva da vida. Por ser uma estudante de ciências humanas, embora tenha apreço pela visão científica, tendo a me identificar pelo posicionamento adotado pelo poeta e a admirar suas citações e falas. Algo que muito me fez refletir foi: “Os cientistas podem nos dizer quais as metáforas para a vida, sejam micro chips ou relógios, os políticos podem nos dizer de que forma devemos viver, mas me sinto tão reduzido sendo chamado de sistema, quanto sendo chamado de relógio.”, isto é “sentir o universo é um trabalho interior”.

    Embora eu seja facilmente encantada pela forma poética pela qual o poeta profere seu discurso, acredito que minha reflexão tenha bases racionais. Como uma estudante brasileira, vejo essa subjetividade dispersa em minha realidade, sendo impossível unificar a realidade de toda a população, visto as consequências da colonização: índios, brancos, pretos e pardos, nenhum tem a mesma bagagem. Diante disso, entendo como o conhecimento, em tese, não poderia ser homogêneo, suas experiências distintas interferem na formação, estrutura e fundamento do conhecimento. No entanto, também como conhecedora da história do meu país, sei como o conhecimento foi homogeneizado, por séculos, por ser restrito a poucos: homens, brancos e burgueses.

    Nesse sentido, ouso usar da minha licença poética para discordar de Descartes: sua máxima defendida, “Penso, logo existo” não se adequaria à realidade colonial brasileira. Entendendo o pensar como duvidar, entender, negar, sentir, concluir; é óbvio admitir que a população indígena e a população negra escravizada no país pensavam. Ambos os povos possuíam seus conhecimentos tradicionais, duvidavam e negavam o imposto pelos brancos colonizadores, sentiam o sofrimento por eles causado. É claro, todos eram seres humanos. Contudo, eles apenas foram entendidos como tal recentemente na cultura ocidental. Apesar de pensarem, não assumiam a máxima cartesiana, ou seja, não existiam, no sentido figurado da palavra. No Estado patriarcal, capitalista e supremacista branco, os colonizadores detinham os capitais econômicos, culturais, sociais e políticos; enquanto aos pretos escravizados, restava a condição de objeto, de “não-ser”. Dessa forma, o sistema instaurado com a colonização, impunha cor à razão, isto é, o conhecimento tido como válido, era o conhecimento branco. Não deveria haver uma verdade universal, em um país diverso como esse, mas havia – e até hoje alguns relutam para que haja – visto que o preto pensava, mas não existia na sociedade brasileira.

    Na mesma linha, aproveito da minha presunção poética para discordar do filósofo Francis Bacon. Com o contexto que descrevi, é incoerente, portanto, defender seu “princípio de neutralidade”. Como pedir para pessoas que até certo tempo atrás eram consideradas como objetos sejam isentas na produção de conhecimento? Após muito sangue derramado e muita luta do movimento negro – sem qualquer uso de hipérbole – esses conseguiram adentrar espaços sociais, antes restritos a brancos, como a Universidade. Assim, não é só possível, como é necessário que a população negra use de sua bagagem, seus juízos de valores, sua história, sua ideologia para produzir academicamente. E daí parte um dos objetivos das políticas públicas de ação afirmativa com marcadores étnico-raciais: romper com a fantasiosa neutralidade no fazer científico; pois um saber científico neutro e universal só seria possível com um grupo homogêneo dominando a Academia, como era séculos (ou décadas) atrás.

    A política de cotas, assim, inseridas no cenário brasileiro a partir de 2012, é a forma de conferir necessariamente a participação negra no saber. Pois, décadas atrás, por exemplo, era fácil para universitários, em sua totalidade brancos, defenderem “meritocracia” como uma verdade universal: ascender socialmente é resultado exclusivamente de cada um. Mas, ao saber, mesmo que superficialmente, da subjetividade da realidade negra no país, é fácil constatar que é impossível defender a fantasia da meritocracia em uma sociedade estruturalmente desigual. Sendo, então, incoerente que uma população de maioria quantitativa negra, tenha negros como minoria universitária; tudo isso consequência da exploração sistemática dos colonizadores e seus sucessores.

    Diante do exposto, concluo ser minha obrigação pensar criticamente quanto a realidade que vivo e defender a lei de cotas enquanto persistirem as marcas do racismo. Embora tenha ressaltado minha identificação com o poeta, reforço que na questão negra não há nada de poético. A romantização que nos é ensinada na escola, sobre a colonização e suas consequências, não corresponde à realidade, e para começar a entender isso, apenas com a inserção de negros na produção de conhecimento. Sendo a lei de cotas uma reparação histórica pequena perto das atrocidades por eles vividas (no passado e no presente), pelo tempo que a eles o conhecimento foi negado, pela não-inserção na sociedade após o fim da escravidão, pelo racismo sistêmico sofrido desde então, e pelos outros infinitos delitos causados pela elite branca brasileira. É necessário ouvir o outro lado da história, o lado que sofreu, lutou, foi calado, o lado não-neutro, não-isento, que foi segregado e não pôde teorizar sobre sua própria vivência.

    A vida é infinitamente mais do que as suas ou minhas obtusas teorias a respeito dela.” 

    – Ponto de Mutação.

1º ano - diurno 

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