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domingo, 27 de junho de 2021

RACISMO ESTRUTURAL: O SABER NÃO PODE SER INFÉRTIL

      “Nasço, logo temo!”. Máxima justificável num contexto sangrento em que às violências perpetradas contra às pessoas negras eclodiram nos meios midiáticos, descortinando (o que nunca esteve encoberto) o racismo estrutural que persiste em existir em pleno século XXI e em vitimar, especialmente, pessoas negras, herança sombria do Brasil colonial, detentor da razão; sei que Descartes discordaria. País este, erigido por mãos de pessoas arrancadas do seu seio familiar para serem escravizadas, tratadas como “peças”, ou seja, mercadorias; muitos não resistiam e morriam no transporte da África até o Brasil. Após quatro longos séculos de escravidão, maus-tratos, mutilações e torturas, os negros estavam libertos perante à lei. Como último país escravocrata da América Latina, em 13 de maio de 1888, é sancionada, pela princesa Isabel, a abolição da escravidão no Brasil, momento a se comemorar, porém, com ressalvas. Os negros estavam livres, entretanto, sem-terra, sem trabalho; sem comida. Sem lar. Abandonados à própria sorte na medida em que à Lei Áurea não previa mecanismos legais de assistência aos libertos, diferente do que aconteceu nos Estados Unidos, com a emancipação dos escravos na guerra de secessão, que teve acompanhamento de leis de assistência e mecanismos que auxiliavam os negros a se inserirem na sociedade. Diante disso, muitos negros preferiram permanecerem nas fazendas onde trabalhavam, vendendo sua foça de trabalho em troca de moradia e comida. Aqueles que foram para os centros urbanos se submetiam a subempregos, trabalhos informais e artesanato, já que não tinham nenhuma outra qualificação profissional além daquela que foram obrigados a exercer, o trabalho braçal. Ademais, o império brasileiro “libertou” os escravos e condenou-os ao ostracismo social, muitos moravam nas ruas e os que podiam ostentar uma moradia, moravam em míseros cortiços ou casas de pau-a-pique, bem longe dos centros urbanos, tendo como fator agravante o preconceito racial. Esse é o contexto gestacional que legitimou a institucionalização do racismo estrutural no Brasil, que excluí de forma substancial a população negra dos diversos segmentos da sociedade. Lei de cotas não repara isso.

      A escravidão acabou, mas as desigualdades e os preconceitos étnico-raciais, fragmentos cancerígenos da escravidão, estão presentes e atuantes em nossa sociedade, basta olharmos os dados divulgados pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ano passado, que apontou que a população negra é a mais violentada no Brasil. Demonstrou que, a cada três homicídios no país, dois deles são negros, somando-se ao fato que a possibilidade de um adolescente negro ser morto no Brasil é 3,7 vezes mais do que um branco, logo, nascer negro é motivo para temer, é quase uma sentença de morte. A luta abolicionista iniciada no século XVI obteve uma vitória significativa em 1888, entretanto, não foi definitiva. A luta agora é para a incorporação da população negra no exercício pleno da democracia, um avanço nesse árduo e pedregoso caminho foi a promulgação, embora tardia, da Lei de Cotas (Lei 12.711/12), política social criada na tentativa de “reparar” o processo histórico de descartabilidade dos negros da sociedade. Dito necessário.

      A temática da revisão da Lei de Cotas, foi tema de discussão na Universidade Estadual Paulista, uma das mais democráticas do país, através do CADir (Centro Acadêmico de Direito), que promoveu, em um canal no Youtube, a IX Jornada de Direito, cujo tema foi a Perspectiva sobre a Revisão da Lei de Cotas em 2022, com as participações dos ilustres professores Juares Tadeu de Padua Xavier, professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação do campus de Bauru/SP da Unesp e Dagoberto José Fonseca, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara/SP. O professor Juarez destacou que uma ação de política pública não é definida com prazo de execução, ela é determinada pela eficiência que ela tem em solucionar uma problemática verificável na sociedade e devolver o problema resolvido, no caso a inclusão social dos negros. Ademais, o professor questiona a adoção do nome “Lei de Cotas” e não Política de Ação Afirmativa, uma vez que aquela reserva-se a uma minoria e está especificaria o público a ser atingido, logo, mais apropriada. Manifestou contrariedade com a denominação “Lei de Cotas”, e que isso evidencia a incompreensão da magnitude do racismo estrutural no Brasil. Já o professor Dagoberto, analisou o processo histórico a partir de um conjunto de legislações que permeou nossa sociedade e como esses mecanismos desconsideravam a existência do racismo estrutural no país. A Constituição, por exemplo, só reconheceu a existência do racismo em 1988. Outrossim, propôs uma reflexão de como é que se deu a nossa invenção de sociedade, país, nação. Enfatizou a percepção eurocêntrica que não reconhecia os povos indígenas e negros como seres humanos e como esse processo de desumanização de povos serviu, inescrupulosamente, para respaldar o genocídio como parte de um projeto político e civilizatório. Finalizou pontuando que, para se analisar a revisão da Lei de Cotas se faz necessário observar o processo civilizatório que excluiu negros e índios nos 520 anos de história brasileira, não apenas dez anos.  

      O conhecimento da existência do racismo estrutural é quase senso comum, no entanto, aconselha-se a importância de considerarmos às reflexões de René Descartes, em sua célebre obra, Discurso do Método, que noz conduz a uma reflexão relevante. Sócrates era um homem bom, Platão também e Aristóteles tinha boas ideias. No entanto, não basta ter o espírito bom, o essencial é aplicá-lo bem, educar a aplicação do juízo de maneira que possamos evitar erros cometido no passado. Não basta filosofarmos, precisamos aplicar os conhecimentos alicerçados na experiência para a resolução dos problemas humanos, fora disso, todo conhecimento construído é estéril, pensava o racionalista Descartes. Todos, segundo a teoria cartesiana, possuímos razão e não há distinção entre elas, brancos, pretos, amarelos e pardos pensam, raciocinam e agem; a razão não tem cor. A razão diz que toda vida importa; nossos princípios, crenças e costumes não. A razão entende que não existem políticas públicas capaz de reparar o genocídio racial que fundou nossa civilização, a razão crê que vidas negras importam. Por fim, é notório que com o advento da Lei de Cotas cresceu o número de pretos e pardos nas universidades e serviços públicos, mas considerando que mais da metade da população brasileira é negra, nos faz entender que a luta pela igualdade racial, iniciada no período colonial, ainda não acabou. Se a dúvida é o princípio do conhecimento na teoria cartesiana, a inércia é o princípio da desgraça da história humana.

      Francis Bacon, um dos fundadores da ciência moderna, nos privilegia com sua obra Novum Organum, obra está que não é apenas um método, um caminho a seguir para expor teorias, mas um instrumento para o espírito, que deveria abrir o caminho para novas verdades, devemos nos apropriarmos dos conhecimentos modernos para promover a igualdade entre os povos. Para Bacon, o conhecimento epistemológico era imprescindível para o progresso humano, instrumento este que se coloca como nova forma de interpretar o mundo, é assim que as fontes históricas e os dados estatísticos que denunciam o racismo estrutural nos faz interpretar que o Brasil, que possuí a maior população negra fora da África, é nocivo para os nascidos negros, o que justifica a expressão introdutória, “nasço, logo temo”. Tentar distorcer os fatos através da retórica negacionista é o mesmo que entrar na caverna da retórica de Francis Bacon e sucumbir à escuridão da ignorância.  

      Portanto, conclui-se que não basta saber que o Brasil é um país desigual, um país racista, paternalista, homofóbico, negacionista, assolador da natureza, enfim, não basta saber, precisamos nos instrumentalizarmos dos conhecimentos construídos e usarmos para o propósito para o qual foram criados, ou seja, melhorar a condição humana. A proposta de Descartes e Bacon era criar uma ciência cujo conhecimento produzido por ela fosse seguido pela razão e pela experiência, libertos de sentimentos e pré-conceitos. A criação da Lei de Cotas nasceu da continuidade da luta abolicionista iniciada a séculos e a perspectiva de revisão servirá para mostrarmos que há muito o que se fazer para minimizar as mazelas da herança colonial brasileira e lutarmos para ampliarmos as políticas de Ação Afirmativa. Como bem salientou o professor Dagoberto, esta luta não é só dos negros, mas de toda humanidade. Temos que combater a premissa de que a carne negra é a mais barata do mercado (refrão da música, A Carne – Elza Soares). Vidas negras importam.


Edson dos Santos Nobre
Direito Noturno

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