O filósofo René Descartes defendia uma ciência transformadora e revolucionária, ao invés de enxergá-la como uma simples ferramenta para contemplação da realidade. Sob esse ponto de vista, a política de cotas raciais pode ser encarada como um instrumento de caráter transformador. No entanto, consoante a decepção do pensador moderno, existe um fator que impossibilita tal modificação: a esterilidade do método de conhecimento precedente, isto é, não havia fontes que pudessem formar uma base sólida capaz de atingir a reforma desejada. Sob esse prisma, pode-se citar a conjuntura social e política como os entraves para a aplicabilidade efetiva dessa ação afirmativa.
Nesse sentido, é importante ressaltar a realidade social do Brasil, um país estruturado a partir do genocídio de povos pretos e indígenas. Marcado pelo racismo desde o seu ‘descobrimento’, o país adquiriu, com o liberalismo, um novo conceito social para a manutenção da discriminação: deixou de ser somente um produto da escravidão pré-capitalista, e passou ser utilizado como uma ferramenta que possibilita a continuidade hodierna de uma escravidão assalariada. Sendo assim, para cumprir com os fins capitalistas, foi necessária a instauração de uma dominação racial, implementada por grupos exploradores, esses que são compostos não apenas pela classe dominante, como também pela camada intermediária da sociedade, a chamada classe média.
Pode-se dizer que a partir desses grupos opressores originou-se o racismo sistêmico, ou seja, aquele que fundou todas as instituições do Estado e que estruturou e replicou o preconceito. À vista disso, a aquisição de bens propiciou à classe média branca alcançar, de modo privilegiado, o capital cultural - destacando-se o ensino superior -, além de organizar o meio urbano de modo que aqueles possuíam maior renda fossem acomodados nas regiões centrais e que, por conseguinte, a população mais pobre, principalmente o povo negro, se alocasse nas periferias. Dessa forma, a região periférica foi formalizada como o ‘espaço do não-ser’, onde há suspensão e negligência da presença do Estado. Ademais, a camada intermediária transfigurou, com base na acumulação de capital, seus privilégios em direitos, às custas da supressão do povo preto.
Em meio a esse cenário díspar, foram criadas as chamadas Leis de Cotas, implementadas a partir de 2012. Com o fito de atenuar as desigualdades socioeducacionais entre as raças, essa política institui a reserva de 50% das vagas em todos os cursos de universidades públicas para os autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Embora seja relativamente recente, a política das cotas é, de modo amplo, um dispositivo que possui competência para iniciar uma modificação social. Tal transformação não se traduz apenas na concessão de oportunidades de estudo a esses grupos marginalizados, mas também no rompimento da representação que a sociedade brasileira burguesa elabora de si, tendo em vista que esses grupos opressores estão pouco habituados a coexistir de forma igualitária com os pretos, pardos e indígenas.
Em consonância com o racionalismo cartesiano, o filósofo Francis Bacon acreditava em uma ciência que deixasse de se guiar somente pela filosofia e passasse a se parametrizar pelo que é observado; a experiência. Sendo assim, a experiência é tudo aquilo que possa ser comprovado a partir de práticas científicas. De maneira análoga, as Leis de Cotas perdem seu caráter empírico ao passo que os fins a que se destinam são verificados na prática, isto é, a partir do momento em que há comprovações de que o aluno cotista tende a possuir um desempenho melhor que os demais ao longo do curso. No entanto, apesar da notoriedade dessa ação afirmativa, grupos dominantes persistem em desmoralizar sua relevância por meio de interesses políticos e sociais de exclusão que foram construídos e normalizados na compreensão geral desde antes da abolição da escravatura.
Clara Crotti Cravo - 1° Semestre - Diurno
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