A perspectiva do materialismo histórico dialético, delineada por Karl Marx e Friedrich Engels, preconiza que as relações de produção estão refletidas na organização da vida social. Assim, todos os aspectos da vida cotidiana retratam, de alguma forma, o modo de produção vigente. Nesse sentido, Richard Senett afirma que o que os indivíduos são depende necessariamente das condições materiais existentes, evidenciando a ligação entre a estrutura social e política e a produção.
Desde o fim da década de 1960, segundo o teórico David Harvey, vivemos a era da acumulação flexível, marcado pelo surgimento de setores de produção totalmente novos, bem como novos processos de trabalho, mercados, produtos e padrões de consumo. Sob a ótica marxista, é possível afirmar que, com esse tipo de infraestrutura, as superestruturas também se alteraram. Na política, houve a (re)emergência de uma ideologia capaz de operacionalizar essas transformações no âmbito dos governos - o neoliberalismo. As “formas de ser” do capitalismo flexível passaram, então, a constituir as “formas de ser” dominantes.
No contexto do trabalho, da mesma forma, percebemos como a vida social é reflexo das relações de produção. O trabalho doméstico - majoritariamente realizado por mulheres -, por exemplo, permaneceu por séculos invisibilizado, não sendo sequer considerado como uma forma de trabalho, pois, como nos mostra a filósofa Silvia Federici, não é do interesse da ideologia capitalista dominante reconhecê-lo e valorizá-lo, já que seria impossível remunerar todas essas trabalhadoras “invisíveis” sem que a lucratividade oriunda disso não fosse afetada. Além disso, a capacidade para o trabalho não é natural, deve ser ensinada. E o grupo social a quem coube essa função, ao longo da história, foi o grupo feminino, responsável por criar e cuidar dos próprios trabalhadores, sem os quais não haveria trabalho propriamente dito. Ou seja, às mulheres foi quem coube a reprodução social da vida, a partir da qual surge a possibilidade de produção. No entanto, este trabalho não é visto com tamanha importância.
Essa é uma das razões pelas quais o casamento, como instituição, surgiu. O contrato de casamento nada mais é do que um contrato de trabalho, pois foi por meio do trabalho das mulheres que permaneciam em casa, fazendo tarefas domésticas e cuidando dos filhos (futuros trabalhadores) que foi possível que os homens trabalhassem fora, produzindo riqueza e alavancando a ordem capitalista. Por essa razão, Federici, não se esquecendo também de todos os séculos em que houve escravização de pessoas nos países colonizados, demonstra a necessidade de haver, no âmbito dos movimentos feministas, a reivindicação de que toda essa riqueza só existe por causa das trabalhadoras que não foram remuneradas durante anos e anos: “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não remunerado.”
REFERÊNCIAS
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2018.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. “Feuerbach – Oposição entre a concepção materialista e a idealista”. In: A Ideologia Alemã (1845-1846). São Paulo: Martins Fontes, 1998. [p. 05-55]
SENETT, Richard. A Corrosão do Caráter: Conseqüências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. 4a . Edição. Rio de Janeiro: Record, 2000. (Cap. 1 “Deriva: Como o novo capitalismo ataca o caráter pessoal” – 13-33).
Fabiana Gil de Pádua - Turno Noturno
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