“A gente vai te chamar, qualquer coisa.”
Foi assim que terminou minha
terceira entrevista naquele mês. Era uma vaga para analista de dados numa
startup em crescimento. Ambiente descontraído, gente jovem, laptops com
adesivos de diversidade colados na tampa. Antes da conversa, me senti confortável.
Quase em casa.
Mas durante a entrevista, percebi
um olhar enviesado do recrutador quando mencionei o bairro onde cresci. “Zona
Leste? Legal.” Sorriu. Mas foi aquele sorriso que não sabe disfarçar surpresa.
Eu já conhecia.
Silvio Almeida nos alerta que o racismo
estrutural não age como uma exceção — ele é a regra. Não precisa de
palavras ofensivas nem de gestos escancarados. Ele se manifesta quando alguém
como eu, um homem negro, entra em um espaço corporativo e carrega consigo o
peso de provar o tempo todo que pertence àquele lugar.
Na semana seguinte, descobri por
uma amiga que a vaga foi preenchida por um rapaz branco, com formação
semelhante à minha, mas sem nenhuma experiência prática. O comentário informal
que ela ouviu na equipe de RH foi: “ele tem mais o perfil da empresa”.
Max Weber diria que toda
dominação precisa de uma justificativa — uma forma de tornar o poder legítimo.
No ambiente empresarial, essa dominação é geralmente do tipo legal-racional:
regras, processos seletivos, entrevistas. Mas, como mostra Almeida, essas
“regras neutras” são atravessadas por padrões históricos que excluem certos
corpos e trajetórias.
A ideia de "perfil"
virou um filtro silencioso. É uma palavra bonita para descrever um padrão que
ninguém ousa escrever, mas todos reconhecem, todos nós sabemos qual é: alguém
que pareça confiável, que fale “bem”, que tenha “boa energia”. E quase sempre,
esse alguém não sou eu.
No fundo, o problema não é só a
escolha de um candidato. É o que se entende, socialmente, como escolha
natural. Quem pode ocupar o espaço da inteligência, da criatividade, da
liderança. E quem parece estar sempre “fora do perfil”.
A dominação moderna não
precisa ser imposta pela força. Ela é mais sutil — vive na expectativa do
outro, na dúvida que atravessa meu currículo, na expressão facial quando eu
digo meu nome completo.
Naquele dia, saí do prédio com a
certeza de que minha formação não estava em questão. O que estava em jogo era
minha presença. E o sistema já tinha decidido que ela destoava demais da
paisagem.
Duas semanas depois da
entrevista, participei de um seminário na universidade onde me formei. Fui
convidado para falar sobre inclusão no mercado de trabalho. Antes de mim, subiu
ao palco uma professora branca, pesquisadora da área de diversidade. Ela citou
dados importantes, falou com segurança e arrancou aplausos.
Quando chegou minha vez, notei o clima mudar.
As primeiras fileiras se ajeitaram na cadeira. Um rapaz
franzino, de óculos, cochichou com a colega: “ele é egresso da instituição?”
Fiz de conta que não ouvi. Apresentei meus dados, falei sobre os processos
seletivos enviesados, mencionei o próprio Silvio Almeida. Fui interrompido duas
vezes por perguntas que pareciam testes de legitimidade, não de curiosidade.
A dominação, como explica Weber,
não se sustenta apenas pela coerção. Ela se apoia no reconhecimento da
autoridade — e essa autoridade não é concedida igualmente a todos. No
espaço acadêmico, mesmo quem domina o conteúdo pode ser tratado como intruso se
seu corpo não corresponde ao imaginário do “especialista”.
Depois da palestra, uma
professora me chamou no canto. Disse que “adorou minha fala”, mas que talvez eu
devesse “tomar cuidado com um certo tom crítico demais”. Agradeci com um
sorriso educado. Já aprendi que dizer certas verdades exige um cuidado quase coreográfico.
Silvio Almeida nos ajuda a
entender: o racismo estrutural é também epistêmico — ele age sobre quem
tem direito de dizer, de ensinar, de interpretar o mundo. É por isso que mesmo
quando falamos com base em dados e teoria, nosso saber precisa antes ser autorizado.
E essa autorização é mediada por raça, classe, e origem social.
Voltei para casa com a sensação
de que estava sempre sendo avaliado em uma escala invisível. Uma escala que não
mede competência, mas compatibilidade com um padrão que nunca me incluiu.
E então lembrei da frase que ouvi
no processo seletivo: "A gente vai te chamar, qualquer coisa."
Ela resume bem. Não é um não. Também não é um sim. É uma espera sem fim, onde a
porta nunca se fecha de vez — mas também nunca se abre totalmente.
EVELLY ALONSO LOPES - 1 NOTURNO