A realidade social não é estática. Ela transforma-se, contradiz a si mesma e se reinventa continuamente. Essa percepção, central na perspectiva marxista da história, rompe com as concepções idealistas que veem o mundo como guiado primordialmente pelas ideias. Em vez disso, coloca no centro da análise as condições materiais da existência humana: as formas como as pessoas produzem, se relacionam e organizam a vida em sociedade. A partir disso, o Direito, longe de ser um sistema neutro ou eterno de normas, aparece como uma construção histórica — reflexo e instrumento das forças que movem a sociedade.
Para o materialismo histórico, a base da vida social está nas relações de produção, isto é, na forma como os seres humanos se organizam economicamente para sobreviver. Essas relações estruturam tudo: a cultura, a política, a moral e, evidentemente, o Direito. A história, portanto, não avança por força de ideias abstratas, mas por meio de contradições concretas entre classes sociais. Essas contradições são dinâmicas, porque a própria vida social está em movimento permanente: surgem novas formas de trabalho, novos sujeitos políticos, novas formas de resistência e novas demandas.
O Direito, nesse cenário, assume uma dupla face. De um lado, funciona como instrumento de conservação, servindo para estabilizar certas estruturas de poder, cristalizar relações econômicas e naturalizar desigualdades. De outro lado, pode ser apropriado pelas lutas sociais como ferramenta de disputa — ainda que dentro de seus próprios limites institucionais. O que é importante reconhecer, porém, é que o Direito se move porque a sociedade se move. Normas, códigos e interpretações jurídicas não são imunes às transformações históricas — mesmo quando tentam resistir a elas.
Um exemplo emblemático dessa relação entre o movimento social e o movimento jurídico está nas mudanças legislativas e jurisprudenciais envolvendo gênero e sexualidade. Por muito tempo, o ordenamento jurídico reproduziu uma lógica binária e heteronormativa, ignorando a existência e os direitos de pessoas LGBTQIA+. No entanto, a pressão social, a mobilização política e as mudanças culturais forçaram o sistema jurídico a se reconfigurar, reconhecendo uniões homoafetivas, garantindo a retificação de nome e gênero no registro civil, e promovendo políticas de inclusão. Essas conquistas não vieram da benevolência da lei, mas do movimento da realidade.
Essa constatação coloca em questão a pretensa neutralidade do Direito. Se ele muda com a sociedade, é porque está imerso nas disputas que constituem a própria vida social. A estrutura jurídica, embora muitas vezes travada por tradições e interesses dominantes, não está fora do tempo. Ela é marcada pela história e carrega as tensões de sua época. Por isso, é fundamental compreender que o papel do Direito não é apenas o de regular condutas de forma abstrata, mas o de responder — ainda que de modo imperfeito e contraditório — às transformações sociais.
Assim, a perspectiva marxista, ao colocar a materialidade das relações sociais no centro da análise, nos permite vê-lo com outros olhos. Um olhar que identifica as raízes concretas das normas jurídicas e percebe que elas só fazem sentido quando colocadas em diálogo com o movimento da vida real. Um Direito que se pretenda justo, portanto, não pode ignorar esse fluxo constante — deve, antes, estar aberto a ser transformado por ele.
Nicole S. Calabrezi - 1º ano - Matutino
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