No século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels desenvolveram a teoria do materialismo histórico dialético como uma forma de compreender o desenvolvimento da sociedade a partir das contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. Para os autores, a base econômica — ou infraestrutura — determina a organização social, política e ideológica — a superestrutura. Nessa perspectiva, as instituições e valores de uma sociedade capitalista não são neutros, mas refletem os interesses da classe dominante. Essa abordagem crítica permite compreender a crise dos sistemas públicos de saúde no mundo contemporâneo como consequência lógica da subordinação da saúde aos interesses do capital, especialmente no contexto pós-pandêmico.
A pandemia da COVID-19 expôs com clareza a fragilidade estrutural dos sistemas públicos de saúde e os limites impostos pela lógica capitalista à garantia de direitos sociais universais. Em muitos países, inclusive no Brasil, o colapso hospitalar, a escassez de insumos e a sobrecarga de profissionais foram agravados pela falta de investimento estatal, consequência de décadas de políticas neoliberais que priorizaram a iniciativa privada em detrimento do fortalecimento do setor público. A saúde, nesse contexto, deixou de ser tratada como direito social inalienável e passou a ser entendida como uma mercadoria — uma prestação de serviço vendida no mercado a quem pode pagar por ela. Esse processo de mercantilização não é casual, mas uma expressão das contradições do modo de produção capitalista.
A lógica da acumulação de capital, segundo Marx, leva necessariamente à exploração da força de trabalho e à transformação de todas as esferas da vida humana em objetos de lucro. No caso da saúde, essa transformação é particularmente cruel, pois implica a naturalização da desigualdade no acesso a condições básicas de vida. Durante a pandemia, enquanto empresas farmacêuticas negociavam vacinas com base na capacidade de compra dos países, populações inteiras em regiões periféricas permaneceram vulneráveis, ilustrando de forma nítida a desigualdade produzida por esse sistema. A pandemia, nesse sentido, funcionou como um fenômeno revelador das contradições do capitalismo: de um lado, a necessidade universal de cuidado; de outro, a seletividade imposta pelo mercado.
Além disso, a mercantilização da saúde aprofunda a fragmentação social e reforça a reprodução das desigualdades de classe. O sistema público, frequentemente negligenciado por políticas governamentais, atende majoritariamente a população mais pobre, enquanto os setores médios e ricos recorrem à rede privada. Isso gera uma segmentação do cuidado e naturaliza a ideia de que há diferentes padrões de saúde para diferentes segmentos sociais, conforme sua posição na estrutura produtiva. Para Marx e Engels, essa diferenciação é funcional ao sistema, pois enfraquece a solidariedade entre os trabalhadores e dificulta a organização coletiva contra as injustiças estruturais.
Dessa forma, a crise dos sistemas públicos de saúde no mundo contemporâneo não pode ser compreendida apenas como um problema técnico ou administrativo, mas deve ser analisada como expressão concreta das contradições entre capital e trabalho. A teoria do materialismo histórico dialético oferece uma chave de leitura poderosa para compreender que a saúde pública não colapsa por ineficiência, mas por estar inserida em um sistema que privilegia o lucro em detrimento da vida. O desafio, portanto, está em questionar as bases materiais dessa estrutura social e repensar o lugar da saúde como um direito humano universal, e não como mercadoria disponível apenas àqueles que podem pagar.
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