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segunda-feira, 21 de novembro de 2022

QUANDO O MÍNIMO É VISTO COMO PRIVILÉGIO POR AQUELES QUE SEMPRE FORAM PRIVILEGIADOS


No Brasil, 18% dos jovens negros de 18 a 24 anos estão cursando uma universidade, segundo o estudo sobre ação afirmativa e população negra na educação superior, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2020. Entre os jovens brancos o número sobe para 36%.

            Após uma breve análise do dado acima, é possível perceber o quão elitista e segregador é o ingresso para o ensino superior, ainda mais quando tratamos de universidades publicas e do acesso de pessoas pretas, pobres ou que façam parte de alguma minoria. Tal realidade não é vista apenas com dados, mas sim, em aspectos do cotidiano: Quantos alunos negros há na sua sala de aula? Quantos professores negros já te deram aula na faculdade? Sem dúvida nenhuma, a resposta foi muito desproporcional comparada ao número de brancos, mesmo em um país constituído majoritariamente por pretos e pardos. Ainda há muito para se conquistar e não há dúvidas disso, porém, se hoje há 18% dos jovens negros cursando universidade é porque em 2004 houve um ato revolucionário e de extrema necessidade, mesmo que tardio.

            Em 2004, a Universidade de Brasília, adoto o sistema de cotas raciais no Brasil, destinando 20% das vagas para candidatos negros e indígenas (pequeno número). Entretanto, esse avanço para a democracia e para a igualdade material, foi o objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de 186, graças ao partido Democratas (DEM), o qual argumentava que a política de cotas era inconstitucional, uma vez que partir de critérios dissimulados e feria o direito a igualdade previsto na Constituição:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

            Contudo, por unanimidade o STF entendeu que não há inconstitucionalidade na politica de cotas, sendo essa na verdade uma excelente maneira de garantir a igualdade prevista na Constituição, visto que o principio da igualdade tem que ser interpretado profundamente, não apenas de maneira estrita, de forma que, em certas situações, ainda mais quando tratamos do contexto político-histórico-social brasileiro, em que fomos o ultimo pais a abolir a escravidão, não dando nenhum suporte para os “libertos”, os quais passaram a ter correntes diferentes das de ferro, passaram a ser acorrentados pela desigualdade, descriminação, preconceito e segregação, faz- se necessário o “tratamento desigual para os desiguais”

            Em tal decisão do STF é possível identificar uma extensa análise do Espaço dos possíveis de Bourdieu, uma vez que foi analisado o campo jurídico, econômico, social, histórico e educacional para se aferir que as cotas raciais são uma ampliação da democracia e não uma inconstitucionalidade, além de que o espaço dos possíveis só foi ampliado com a adoção do sistema de cotas, graças aos movimentos sociais das populações que sempre foram marginalizadas. Por fim, além da expansão do espaço dos possíveis, ainda houve a historicização da norma, uma vez que foram analisados preceitos históricos sob a interdisciplinaridade dos campos sociais, econômicos e políticos para a conclusão de tal decisão.

            Ademais, pode-se considerar que a ADPF 186 configura um grande exemplo de “magistratura do sujeito” e “paternalismo judicial”, já que, as populações que sempre foram esquecidas, pisoteadas, discriminadas e segregadas, tiveram seus direitos resguardados, defendidos, protegidos e ampliados pelo sistema judiciário, garantido que o que é previsto na Constituição saia do papel e venha a fazer parte da realidade das minorias. Não há questões ou pelo menos não deveriam ter a respeito de que tal feito não é uma ameaça à democracia, constitui apenas uma ameaça ao elitismo das universidades e a aqueles que sempre foram privilegiados e acreditam piamente que as cotas caracterizam privilégios e não um direito básico, que não chega nem perto de igualar as chances dos candidatos, mas sim de garantir que pelo menos haja uma chance.

            Outro ponto importante de ser debatido é em relação a mobilização do Direito de McCANN, as cotas não são esmola e muito menos fruto da bondade da UnB, os direitos conquistados foi resultado da luta e organizações da população preta e indígena, mais especificamente, fruto de mais de 500 anos de luta e derramamento de sangue dessas minorias. Além disso, tal vitória possibilitou um maior espaço, apoio e mecanismos para sustentar as lutas posteriores, tem-se como exemplo, a lei das cotas (12.711) sancionada em 2012 ou a luta atual que prevê que além do ingresso nas universidades é necessário que haja uma política de permanência para essas populações.

            Em último lugar, a declaração de constitucionalidade da ADPF 186 garante que haja o pluralismo de ideia na sociedade, rejeitando a monocultura do saber, conceito definido por Sara Araújo. Dessa forma, atualmente é possível se desprender, mesmo que em partes, daquela cultura eurocêntrica a respeito das universidades, crianças negras e indígenas percebem que os ambientes acadêmicos além de estarem abertos para eles, são possíveis e estão lá para serem ocupados por eles, para dar início e apoio as ideias e conhecimentos deles, dando fim, ao que a autora chama de “monocultura da produtividade”. Certamente, ainda há muito a ser conquistado, mas que não nos esquecemos da importância daquilo que já conquistamos e que ninguém é livre enquanto outro ser humano estiver preso pelo racismo, desigualdade, descriminação. Ainda que as correntes dele sejam diferentes das nossas!

Anny Barbosa - 1º ano de Direito Noturno.

 

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