Sara Araújo afirma o domínio do pensamento europeu sobre a Ciência e o Direito, sendo que os parâmetros da Europa, ao serem imaginados como “universais”, criam uma linha abissal, a qual divide o mundo como o que está “deste lado da linha” e o que está “do outro lado da linha”. Dessa maneira, o que é distinto do padrão europeu é invisibilizado ou tido como menos evoluído e irracional, subjugado à epistemologia do Norte. A autora detalha esse processo, de projeção eurocêntrica do pensamento, em cinco formas de monocultura: do saber e do rigor do saber; do universal e do global; da produtividade; da naturalização das diferenças; do tempo linear. O Direito também difunde modelo eurocêntrico, através da linguagem, de técnicas e do uso de pressupostos do Direito europeu. Sara Araújo defende, então, a ecologia de direitos e de justiça, em que as cinco monoculturas não são mais admitidas e são aceitas concepções diversas de Direito, de outros povos e de outros contextos, com origem plural e complexa. Esta seria uma forma de tornar o campo jurídico mais igualitário, acessível e justo, além de contemplativo das diferenças e das desigualdades.
É possível relacionar a teoria de Sara Araújo com questões da ADPF 186 do Supremo Tribunal Federal. Nesta, o partido DEM exigiu que fosse declarada inconstitucional a implementação de cotas raciais por parte da UnB no vestibular desde 2004. O DEM constatou que o uso de critérios étnico-raciais no processo seletivo ofende os Arts. 1º, 3º, 4º, 5º, 37, 205, 206, 207 e 208 da Constituição Federal. Estão dentre os pontos feitos pelo arguente a ideia de que a reserva de vagas por critérios de raça fere a igualdade; faz do Brasil um “Estado racializado”; é desnecessária; que ninguém é excluído, no Brasil, “pelo simples fato de ser negro”; e que inexiste o conceito de raça, considerando que “a opção pela escravidão destes ocorreu em razão dos lucros auferidos com o tráfico negreiro e não por qualquer outro motivo de cunho racial”. Além disso, a ação foi ex tunc, isto é, o DEM pediu que os alunos negros aprovados em 2009 a partir da reserva de vagas perdessem as vagas obtidas, um direito já adquirido, e que uma nova lista de aprovação fosse divulgada pela UnB. Um dos fundamentos das cotas raciais é o princípio da igualdade material, de que não basta que a lei tome dois indivíduos em condições bem diferentes e assuma-os como iguais, tratando-os da mesma forma, em visão formalista, mas de que o Direito deve admitir a perspectiva de torná-los de fato iguais, o que não são. Ou seja, não se pode entender que pessoas com oportunidades diferentes e condições de vida diferentes sejam uma como a outra, porém, para que a igualdade seja concretizada com substância, as suas distinções têm de ser visualizadas. Partindo do ponto que, em virtude do racismo, a população negra está presente no ensino superior em número muito menor do que a população branca, tanto as razões para isso quanto o fim em si devem ser revertidos, o que justifica a existência de políticas afirmativas. Assim, estas servem para promover a equidade em face das diferenças, sem negá-las, desgarrando-se do conceito formal de igualdade. A busca da igualdade material encontra reverberação na busca pela justiça social, ambas pretensões que estão na Constituição Federal e que têm de fazer parte do Direito brasileiro. Outra questão é que o arguente despreza a existência do racismo, pois afirma que não há discriminação em decorrência da raça. Isso é um enorme equívoco, uma cegueira, e ainda proposital, uma vez que nega as várias dimensões do racismo, nega a herança histórica de subalternização das pessoas negras, por séculos de escravidão; nega a esfera política do racismo, com a falta de representatividade negra nos espaços políticos, e a falta de políticas e serviços do Estado desenhados para atender a população afrodescendente; nega a esfera econômica do racismo, com índices de pobreza e desemprego bem maiores dentre os brasileiros negros; nega a esfera social do racismo, de contaminação do imaginário social com estigmas sobre as pessoas pretas, com a existência de ideologia que normaliza a marginalização dos negros e que normaliza a discriminação racial. O Silvio Almeida descreve o racismo dessa forma, como estrutural, algo presente nas várias estruturas da vida, no âmbito político, econômico, jurídico e social; também o autor entende a raça como um conceito relacional-histórico, de construção social. Portanto, não se pode desconectar as premissas de igualdade e de dignidade da Constituição do contexto de profunda subalternização da população negra. A dignidade assume que todos os cidadãos devem conseguir se realizar plenamente, com acesso aos bens imateriais e materiais imprescindíveis à vida, sem jamais serem instrumentalizados. Dessa maneira, as ações afirmativas para a inclusão de pessoas negras nas universidades estão em acordo com a ordem jurídica, para a promoção de igualdade e dignidade. Além de que, conforme a Constituição, as universidades públicas têm autonomia para definir políticas e condutas que seguirão, o que dá legitimidade à UnB em determinar as ações afirmativas que adotará.
Tomando como referência a teoria de Sara Araújo, através do formalismo jurídico, adota-se postura eurocêntrica e tradicionalista no Direito, que permite perpetuar sistemas de opressão e de exclusão de determinado grupo. Ao dar significados clássicos à igualdade e à dignidade, os quais são somente superficiais e estritamente jurídicos, as condições de fato e a realidade de toda uma população é desprezada e considerada como questão não pertencente ao Direito. Contudo, ao avaliar a situação do ponto de vista dos excluídos, ao considerar distintas teorias do Direito senão a liberal, ao observar a realidade fática, o “Direito achado na rua”, torna-se evidente o peso e a importância de políticas afirmativas, algo a ser reconhecido no campo jurídico, pela contribuição à igualdade material e à dignidade humana. Além de contribuir para outras pretensões do texto da Constituição, como à redução das desigualdades e à não discriminação de qualquer tipo. Ademais, para utilizar da fórmula de Antoine Garapon, a maior autoridade do Judiciário foi necessária neste caso, a fim de solucionar um pendente conflito, de vulnerabilização de sujeitos, só remediado com a atuação da Justiça, que se impôs sobre a autonomia frágil dos cidadãos e agiu de maneira tutelar. Com a fórmula de Bourdieu, tratou-se de disputa de leituras no espaço dos possíveis, em que as forças progressistas e os indivíduos afrodescendentes saíram vitoriosos, não estando o Direito de jeito algum isolado das lutas e problemas da sociedade. Então, a partir de Michael McCann, as ações judiciais, com aspectos políticos, são “ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores”. Nesse sentido, grupos afetados ou interessados articulam-se com o Direito, travam discussões em Cortes, fazem uso de mecanismos institucionais para assegurar a efetivação de direitos, obter certo bem. Na batalha judicial pela constitucionalidade das cotas raciais no ingresso às universidades públicas, houve exatamente isso, o engajamento do grupo interessado, da população afrodescendente e de ativistas, para que o direito fosse reconhecido, sendo de seu mérito o resultado, decorrente da árdua luta e insistência para consegui-lo.
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