O tema em questão é a análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 do Distrito Federal (versando sobre cotas raciais), julgada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 26 de abril de 2012, à luz das principais ideias de Pierre Bourdieu, Antoine Garapon, Ingeborg Maus, Michael McCann, Sara Araújo e Achille Mbembe. O conflito expresso no litígio é aquele protagonizado de um lado pelo Democratas - DEM, que entendem que o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial no processo de seleção para entrada em instituição pública de ensino superior fere o princípio constitucional da igualdade previsto no artigo 5º da Carta Política, assim como acreditam que as medidas que buscam reverter o quadro de desigualdade no âmbito universitário devem ser interpretadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos da Lei Maior; do outro lado, tem-se aqueles que defendem as cotas raciais como políticas públicas de inclusão aos bancos da Academia de uma comunidade historicamente marginalizada, como, por exemplo, a EDUCAFRO - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes e que também defendem o princípio de que o modelo de Constituição brasileiro já adotou mecanismos institucionais de correção de distorções da aplicação basicamente formal do princípio da igualdade. O “espaço dos possíveis” de Bourdieu apresenta-se desfavorável ao requerente, neste caso, o partido Democratas, pois há muito tempo que as políticas afirmativas no ensino universitário vêm sendo utilizadas e vêm tendo sua eficácia no combate a desigualdades aferida. Prova cabal disso é o antigo pensamento aristotélico que já pode começar explicando este ponto, qual seja, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, isto é, não se pode analisar a população negra com os parâmetros utilizados com a branca, pois essa, digamos, não tem que lidar com injustiças oriundas de um passado escravocrata de 500 anos. Outro aspecto importante é o avanço conquistado por pretos e pardos com as cotas, já que em 1997 só 1,8% da população negra ingressou no ensino superior. Em 2011, todavia, este número pulou para 11,9%, i.e., houve um aumento de quase 1000%. É interessante notar também o lugar que a norma ocupa no espaço histórico, em outras palavras, a oportunidade do Estado brasileiro fazer algo que minimamente pudesse mitigar as explícitas diferenças de oportunidades entre negros e brancos nas universidade do País foi de certo modo usada. Porém, é fulcral sempre relembrar, o racismo na realidade nacional é estrutural e para ser combatido medidas de caráter mais profundo e significativas devem ser tomadas com o fito de democratizar o acesso à educação.
Bebendo das fontes de Garapon e Maus, pode-se dizer que a situação expressa uma busca de direito por um grupo social e não o suposto “ativismo judicial”. O que demonstra tal natureza é a petição impetrada pelos Democratas que deu início a todo o processo judicial e não uma vontade particular de algum Ministro do Supremo que pudesse estar querendo protagonizar a demanda e impor seus valores morais e políticos à população geral por meio de sua autoridade. Quer dizer-se, o caso trata de “magistratura do sujeito” e não de “paternalismo judicial”, pois aqui há a busca, há a mobilização do judiciário para a defesa de direitos duramente conquistados por grupos estigmatizados. O direito aqui protegido é o de acesso à educação digna e de qualidade por um segmento da coletividade que durante muito tempo teve sua personalidade negada. Sem o auxílio das vias judiciais, nunca o direito à educação igualitária seria mantido, pois é apenas com decisões de tribunais que os contrários à popularização da instrução pública superior entendem a relevância de se coletivizar o ensino com parcelas violentadas ao longo da história nacional. A decisão favorável do STF em relação à lide representa um fortalecimento democrático pois confirma o espírito cidadão da Lei Maior de 1988. O País é mais íntegro quando permite o ingresso de milhares de indivíduos com trajetórias de vidas diferentes de umas das outras. De acordo com McCann, as expressões da mobilização do direito, ou melhor, quem o mobiliza e porque assim o faz podem ser percebidas a seguir. O conservadorismo reacionário, numa tentativa desesperada, após a Universidade de Brasília ser a primeira no Brasil a conceber o sistema cotista ainda em 2003, com o apoio da centro-direita busca o aval de um dos poderes, nesse caso, o Judiciário, para impedir, na mente deles, uma violação grave à meritocracia construída principalmente no Ocidente pós Revolução Francesa com seu lema “Liberté, Egalité, Fraternité”. O que essas pessoas não percebem é que este bordão, só para começar, foi só um símbolo para ser consumido pelas massas para que estas se sentissem representadas e participantes ativas do processo de derrubada da monarquia absolutista, em outros termos, não passou de um estratagema da burguesia para tirar a nobreza de seu caminho até o poder. Para além desta discussão historiográfica, depois dessa decisão pelo Supremo, lutas e pautas mais “inovadoras” e “progressistas” poderão fazer parte da discussão na mais alta corte na Nação. Muitas meninas pretas periféricas, a título de ilustração, poderão sonhar e eventualmente concretizar o sonho de fazer engenharia nuclear, pois saberão que seu direito à educação não será cerceado por sistemas racistas de controle. Consoante Araújo e Mbembe, expressões da monocultura do saber e de uma ecologia de saberes (e de justiças) presentes no julgado podem ser observadas quando o resultado do processo europeu de dominação e exploração de africanos raptados e traficados para as Américas com o objetivo de serem vendidos como escravos lá interfere nas possibilidades dos descendentes dessas pessoas constrangidas em entrar em uma universidade pública e cria abismos de concretização de prerrogativas asseguradas pela obra da Constituinte de 1987. O capitalismo apropriou-se do conceito de raça para que os comerciantes do Norte pudessem lucrar com a remoção, para dizer o mínimo, de milhões de pessoas de suas terras natais para servirem de mercadoria em terras estranhas. Supervalorizar conceitos oriundos da filosofia europeia sem levar em consideração o que esses mesmos europeus fizeram com a América Latina, exempli gratia, é jogar fora todo um arcabouço científico criado no sul global que pode explicar melhor as realidades das margens do capitalismo pois são indivíduos advindos desses mesmos lugares que o elaboraram. Quando a razão negra é percebida na desumanização, ou, quando despersonalizamos uma comunidade toda, pois negamos direitos a ela, é óbvio que as consequências do período escravagista transformadas em feridas na atualidade precisam ser costuradas com linha fina.
Thiago Ozan, Direito noturno
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