''Seminários dos Ratos" talvez seja o mais célebre e político conto da escritora paulista Lygia Fagundes Telles, em uma alegoria humorística e dolorosamente irônica a escritora apresenta o leitor ao cenário dos Anos de Chumbo da Ditadura Civil-Militar de 1964 através da metáfora da realização de uma reunião governamental fictícia para discutir o que se deveria fazer a respeito da infestação de roedores que vinha apavorando a população brasileira. É evidente que os ratos são uma metáfora para os inimigos do regime militar, no entanto, não são somente as analogias sarcásticas que chamam a atenção nesta pequena obra prima, mas também a semelhança dos comportamentos dos políticos da ficção com a realidade da época e, infelizmente, com a atual. O exemplo mais explícito talvez seja o "Secretário do Bem-Estar Público e Privado", vejamos seu discurso quando é questionado pelo Chefe das Relações Públicas acerca dos gastos com o Seminário dos Ratos:
"– Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína…
O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se completou.
– Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga por favor. "
Nota-se que o o posicionamento do funcionário público lembra um comportamento típico da época de escrita do conto, que insiste em permanecer latente na sociedade atual: ao invés de analisar a questão dos gastos com o evento de uma perspectiva macro, refletindo se, quem sabe, os recursos utilizados para a reunião tenham sido exagerados em face das dificuldades enfrentadas pelo povo naquele contexto, o excelentíssimo prefere se prender ao fato de que o noticiarista deve ser "de esquerda", ou seja, deixa sua visão pessoal afetar o exercício do trabalho público.
Acerca desse cenário, o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills nos diz que “[...] tudo aquilo de que os homens comuns têm consciência direta e tudo o que tentam fazer está limitado pelas órbitas privadas em que vivem. Sua visão, sua capacidade, estão limitados pelo cenário próximo: o emprego, a família, os vizinhos; em outros ambiente movimentam-se como estranhos, e permanecem espectadores”. Partindo dessa chave, não se estranha o comportamento do Secretário, tendo em vista a tendência humana de abstrair o mundo através de sua experiência doméstica, pessoal e subjetiva, ao invés de pensar os acontecimentos de forma global e histórica visando uma compreensão ampliada da realidade.
Para mudar esse cenário, sugere-se justamente uma visão mais crítica do real, que englobe todos os fatores históricos, sociais e políticos que recaem sobre uma situação sociológica. A título de exemplo, circula nas redes a gravação de uma audiência virtual do processo de uma causa trabalhista na qual o requerente alega ter sido coagido a assinar um contrato entregue pelo seu empregador, o magistrado pergunta ao trabalhador "Mas o senhor não leu o contrato? Se assinou o contrato sem ler o problema é do senhor", a advogada do trabalhador refuta "essa não é a realidade do Brasil, excelência". Aqui, o senhor juiz de direito demonstra não possuir imaginação sociológica, ao desconsiderar os problemas estruturais que podem ter levado o trabalhador a assinar o contrato sem ler, como coação sob ameaça de perda do emprego, e ignora, ainda, a questão do desemprego estrutural no país e a precarização do trabalho como sua consequência mais direta, no fim, ignora tudo aquilo que não se encontre na esfera de seu julgamento pessoal.
No fim, o que se demanda, se valendo dos termos do Antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, é um pensamento menos "de casa" que considere experiências exclusivamente pessoais e mais " da rua" que enxergue o social sob uma perspectiva mais coletiva, geral e abrangente, caso contrário, o fim é o mesmo do conto de Lygia Telles, após a invasão dos ratos ao edifício:
"No rigoroso inquérito que se processou para apurar os acontecimentos daquela noite, o Chefe das Relações Públicas jamais pôde precisar quanto tempo teria ficado dentro da geladeira, enrodilhado como um feto, a água gelada pingando na cabeça, as mãos endurecidas de câimbra, a boca aberta no mínimo vão da porta que de vez em quando algum focinho tentava forcejar. Lembrava- se, isso sim, de um súbito silêncio que se fez no casarão: nenhum som, nenhum movimento. Nada."
REFERÊNCIAS UTILIZADAS
CHARLES WRIGHT MILLS. A Imaginação sociológica. Rio De Janeiro Zahar, 1975.
LYGIA FAGUNDES TELLES. Seminário dos ratos. Editora Companhia das Letras, 2009.
Conto para ler online na íntegra: https://contobrasileiro.com.br/seminario-dos-ratos-conto-de-lygia-fagundes-telles/
Vídeo da causa trabalhista: https://www.tiktok.com/@stephanerocha_/video/7166270321329278214?q=advogada%20trabalhista%20audiencia&t=1679848541952
ROBERTO DA MATTA. A casa & a rua.
Aluna: Maisa Martins Alves - Primeiro Ano (Noturno)
RA: 231222599
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