De um olhar enevoado para um olhar límpido
Na perspectiva de Milles, a consciência
direta dos indivíduos está limitada pelas órbitas privadas em que vivem, isto
é, os meios em que convivem – escola, trabalho, família. Logo, o raciocínio
acostuma-se com o que é comum a esses ambientes, tornando fora do padrão os
meios divergentes. Isso une ideias pares e segrega ideias dispares, prejudicando
o diálogo entre diferentes. Acentua-se tal problemática com as redes sociais,
que tem algoritmos que organizam os grupos semelhantes para estimular o acesso
à rede. Assim, não há trocas culturais, mas a imersão em um meio no qual os
princípios e os valores são homogêneos. Esse cenário é perigoso, especialmente,
para a disseminação de notícias falsas, pois se o conteúdo da notícia for
consonante com os credos do grupo leitor, a resistência a determinadas
narrativas é diminuída. Para o pensador, a capacidade de assimilar a notícia é
esmagada pela frequência a qual o bombardeamento de informações é feito.
Nesse sentido, perde-se a lucidez
necessária para o indivíduo compreender as próprias atitudes perante a si e ao
mundo. A imaginação sociológica, que permite a compreensão da história, da
biografia e da relação entre ambas dentro da sociedade, é enevoada. De fato,
isso pode ser observado com a disseminação de notícias falsas por grupos
bolsonaristas: há uma concentração virtual de pessoas que possuem em comum
valores conservadores e propagam informações que beneficiam o espectro político
delas, enquanto fatos, que amedrontam tais princípios compartilhados, são
negados. Esses cidadãos se alienam com uma justificativa de defender a pátria e
tornam-se irracionais, não percebendo como tais atos podem afetar a história do
Brasil. A invasão ao Palácio do Planalto evidencia como um início, supostamente
banal, de um compartilhamento falso na internet pode organizar um ataque
terrorista à estrutura democrática do país.
Como resolução para a mazela
social que caracteriza as fake news, pode-se recorrer a uma das bases epistemológicas
da ciência moderna: René Descartes. Para ele, o método científico deve ser
orientado pela razão, como forma de superar os mitos que poluem a construção do
conhecimento. Logo, a dúvida deve orientar a construção do pensamento para que,
assim, a ciência possa ser um elemento voltado para o bem do homem. Se a
verificação de notícias fizesse parte da prática social, a irracionalidade e a
alienação perderiam espaço para o conhecimento verdadeiro que Descartes tanto
busca. Isso pode ser visto pela fala de Bolsonaro que constatou, sem provas,
que a cloroquina teria salvado 100 mil vidas – ainda que o uso desse remédio
para o tratamento da covid-19 tenha sido contraindicado pela Organização
Mundial da Saúde. Nesse caso, o ideal conservador, personificado pela frase do
presidente, serviu de base para um negacionismo científico que auxiliou no
crescimento do número de mortos pela doença, enquanto uma dúvida poderia ter
salvo tais vidas.
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