"Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal” [1]. Assim inicia-se a obra “O Processo”, do escritor tcheco Franz Kafka. No romance, Josef K., é um bancário que se vê acusado de um crime sem saber o fato que teria originado o processo, ambientado em uma atmosfera caótica e labiríntica onde acompanhamos o desespero psicológico do personagem diante de sua completa inercia e impotência diante do poder dos tribunais.
Desta forma, o argumento weberiano de direito vai de encontro com a capacidade de coação do direito encontrada na obra de Kafka. Nesse sentido, o direito em Weber será construído a partir de quatro conceitos chaves: coação, legitimidade, normatividade e racionalidade. A obra de Kafka será nossa forma de compreensão da magnitude e possibilidades danosas que o direito possui, para tornar essas possibilidades mais elucidativas, tomemos por exemplo, o caso agricultor José de Anchieta Fernandes, que ficou preso por dois meses sem acusação do Ministério Público [2], existem muitos Josef K., ao nosso redor. É importante para além do exercício analítico do direito em Weber, o reconhecimento do poder arbitrário que o direito possui.
2. Weber e o direito
Embora
Weber não tenha escrito uma obra sistemática sobre o direito, a definição
encontrada pelo sociólogo alemão em “Economia
e Sociedade”, é a seguinte: “Uma
ordem será considerada... direito se for externamente garantida pela
probabilidade de que coação, física ou psicológica, será aplicada por um staff
de pessoas autorizadas a fazer cumprir a ordem ou castigar sua violação ”[3].
Max
Weber, portanto, estabelece o direito como subproduto da coesão, ou seja, a
capacidade de reprimir e conter as eventuais manifestações de quebra da ordem
jurídica, entretanto o direito é mais uma das ordens normativas, como as convenções
morais que são formas de organização do tecido social, o objeto de
diferenciação do direito das demais ordens de coação, é sua legitimidade.
No
direito, as regras são moldadas de acordo com critérios de racionalidade, ou
seja, são criadas a partir de técnicas logicas e formais aplicadas por uma
autoridade reconhecida, portanto, diferente de outras ordens normativas, o
direito possui seus próprios critérios de produção e modelação. Esse era uns dos grandes interesses de Max
Weber em sua sociologia, compreender os motivos que levam as pessoas a
aceitarem a legitimidade da coação do direito.
Diferente
das formas de dominação tradicional e carismática, o direito possui um aparato
de racionalidade e burocracia, com profissionais próprios que atuam de forma
hierárquica e judicialmente reconhecida, por exemplo, para ser advogado é
preciso além se ser bacharel, passar na prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que dá ao aparato coercitivo
maior legitimidade em suas ações.
Outro ponto importante, é que o direito como Weber o caracteriza foi resultado do processo de acumulação de recursos econômicos trazidos após as reformas protestantes na Europa, a ética trazida pelos luteranos, anglicanos e calvinistas possibilitou o surgimento do próprio capitalismo e do direto moderno.
3. Kafka e a modernidade
“No
romance Der Process (O Processo), o bancário K. é perseguido por tribunais
misteriosos por motivo de uma culpa que ele ignora e que só pode agravar-se
pelas tentativas de defender-se contra a acusação; pois o desfecho é, em
qualquer caso, a condenação à morte – à qual todas as criaturas são condenadas
” [4].
Assim o
crítico literário Otto Maria Carpeux, define a obra de Kafka, um relato de
culpa de um culpado sem crime, atormentado pela incapacidade de reação diante
do aparato burocrático. Franz Kafka se formou em direto, mas foi com seus romances
que encontrou o reconhecimento, infelizmente somente após sua morte.
A história do bancário não é produto
exclusivo da literatura, a realidade dos fatos pode ser tão cruel quanto a
capacidade criativa do autor. Como lembra Otto Maria Carpeux, comentando Kafka “A Lei não pode ser cumprida: somos
fatalmente culpados e fatalmente condenados” [5], essa é a história de Nathaniel
Julius, um jovem sul-africano, de 16 anos, que tinha síndrome de
Down, e foi morto com um tiro no peito disparado por policiais após ser
abordado [6].
Weber não era um apologista dos abusos
comedidos por autoridades legitimamente constituídas, por esta razão temos (ou
pretendemos ter) um “Estado Democrático
de Direto”, quando as violações são cometidas as leis agiram para reparar e
coagir os efeitos das violações. Entretanto, é importante realizarmos uma
crítica materialista a esta concepção, afinal não se pode falar em Estado
Democrático de Direto, sem antes pensarmos nas desigualdades presentes na
própria elaboração do direito.
Um verdadeiro Estado de Direito, pressupõe acesso à justiça; processos
públicos e respeitando o devido procedimento legal; um sistema de pesos e
contrapesos; mas também pressupõe justiça social, racial e de gênero; pressupõe
igualdade de oportunidades e ampla participação dos cidadãos. Como lembra Hans
Kelsen, países autoritários também tem direito, independente se são
democráticos ou não, o direto sempre está lá.
Portanto,
se é da vontade geral um direto democrático, que permita a legitimação dos
conflitos e a correção das desigualdades, é mister repensarmos aquilo que
fazemos do direto ou continuaremos a ver casos como do agricultor José de
Anchieta Fernandes, preso sem acusação, mais um dos nossos personagens
kafkianos diários.
Referências bibliográficas:
[1].
KAFKA,
Franz. O Processo. Alfragide: Leya,
2009 (p.5)
[2].
Disponível
em:
https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/preso-por-dois-meses-sem-denuncia-mpf-13022015.
Acessado em: 03/09/2020. Às: 15:46
[3].
TRUBEK.
David Max. Max Weber sobre o Direito e a Ascensão do Capitalismo. Revista Direito GV. V. 3 N. 1, p. 151
- 186, p. 156, Jan-jun 2007.
[4].
CARPEAUX.
Otto Maria. História
da Literatura Ocidental. 3.d. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2008. (p.2518 – 2519).
[5].
idem,
p. 2519
Nenhum comentário:
Postar um comentário