O livro “Sapiens: uma breve história da humanidade” trata da evolução do homem ao patamar de animal predominante no mundo e sua prevalência sobre as demais espécies humanas. Não descartando a possibilidade de conflitos entre sapiens e outros humanos, o livro sugere que levávamos vantagem não pela força física, mas sim pela capacidade de união entre os membros da espécie, sendo isso explicado pelo enorme potencial do homem de criação de mitos e valores, que resultavam na existência de uma consciência coletiva e, consequentemente, na solidariedade. Assim, entendendo a lógica da consciência coletiva como um caminho para o funcionamento da comunidade, o sociólogo Emile Durkheim interpreta a sociedade contemporânea capitalista como um sistema orgânico, ou seja, constituído de partes menores que atuam conjuntamente para a manutenção de seu metabolismo.
Para que houvesse progresso, seria necessário que cada
indivíduo de uma sociedade cumprisse com sua função, havendo uma
interdependência entres os membros de acordo com suas respectivas ocupações.
Por exemplo: no contexto da revolução industrial e da instalação da cultura
liberal, o burguês, dono dos meios de produção, necessita de mão de obra para
dar início ao processo produtivo, enquanto que o operariado necessita das
máquinas para produzir. Assim sendo, patrão e operariado (órgãos) exercem suas
respectivas funções para o bom funcionamento da fábrica (corpo), mesmo que, no
fim do processo, a diferença de lucro entre as partes seja gritante. Vê-se,
então, que se desenvolve uma sociedade que normaliza a desigualdade social, justamente
por depender dela. Porém, tal modelo é não somente injusto como falho, pois
basta que um órgão pare de funcionar para comprometer todo o organismo, como
ocorrido em 2018 durante a greve dos caminhoneiros que, durante uma semana,
levou o país a um cenário perturbado de escassez no comércio.
Porém, como é possível que pessoas de classes mais baixas
aceitem se submeter à vontade das privilegiadas sem questionar as injustiças
que sofrem? Desde criança, o indivíduo é submetido aos ideais da sociedade na
qual se insere. Instituições sociais como família e escola, associadas à
realidade social de cada um, atuam de forma a moldar nosso pensamento e nos
adaptar ao funcionamento da sociedade. Dessa forma, cria-se o ideal de
julgamento, podendo diferenciar o certo do errado de acordo com a perspectiva
sobre a qual formula-se o caráter crítico. Quando envelhecer, o indivíduo
estará apto a passar seus ensinamentos a demais crianças e assim se alimenta o
ciclo, onde consciências e personalidades particulares influenciam nas coletivas
e vice-versa. Assim, em uma sociedade criada a partir da exploração indígena e
da escravidão africana, ainda é possível encontrar o valor da “superioridade”
entre seus membros, por meio da ideia do “você sabe com quem está falando?”.
Logo, exemplos de humilhações ainda podem ser vistos em falas como “cidadão
não, engenheiro civil, melhor do que você”, ou “você tem inveja de mim”, etc.,
provando que o Brasil é um país formado por uma elite atrasada, que ainda tem
muita história para estudar.
Nesse contexto onde os valores moldam a ideologia da
sociedade orgânica, Durkheim estuda o direito como o sistema nervoso do
organismo, por se tratar da ferramenta que regula harmonicamente as funções do
corpo. O jurista Miguel Reale defende, em seu livro “Teoria tridimensional do direito”,
que o corpo jurídico se molda sobre três pilares: fato, norma e valor,
indicando a interdependência entre esses fatores. Logo, sabendo que os valores
morais de um povo interferem em sua legislação, entende-se que aquilo que é
classificado como crime é, na verdade, o que é desaprovado pelo coletivo, e que
penas não são fiéis ao fato em si, mas ao julgamento ao qual este estará submetido
estando naquela sociedade. À ilustração disso, vemos o texto teatral “A exceção
e a regra” do dramaturgo alemão Bertolt Brech, na qual um homem rico é
inocentado por um tribunal após assassinar seu funcionário por este significar
uma “ameaça”. No enredo, é tratada como “regra” a ideia de um cidadão mais
humilde ser mais violento. Logo, mesmo sendo inocente de qualquer crime, o
tribunal ignora a situação em que estava o falecido, e julga o caso como legítima
defesa por parte do homicida, alimentando o estereótipo do pobre bandido contra o rico herói.
Exemplos de casos assim são vistos diariamente em noticiários, em que jovens
negros e pobres pegos com pequenas quantidades de drogas são julgados como
“traficantes”, enquanto que um rapaz branco de uma família rica brasiliense que
trazia animais ilegalmente de outros países é julgado somente como “estudante”.
Enquanto injustiças acontecem diariamente, a sociedade
segue “funcionando”. Nesse sistema orgânico em que classes se conectam somente
por questão de necessidade, e não de humanidade e empatia, vê-se uma falsa
solidariedade que nos é imposta ao compormos a sociedade. Assim, o método de
análise social proposto por Durkheim permite a compreensão desde o modelo
econômico vigente até a perpetuação de preconceitos vistos na sociedade
contemporânea, provando que dificilmente haverá mudanças sociais enquanto
valores ultrapassados seguirem tomando conta da consciência coletiva.
João Victor
Rodrigues Ribeiro – 1° ano Direito Noturno
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