Madame satã é um filme
escrito e dirigido por Karim Aïnouz, inspirado na história real do pernambucano
João Francisco dos Santos, o qual usava “madame satã” como nome artístico em
suas performances transformistas realizadas em casas noturnas na Lapa, Rio de
Janeiro, na década de 30. O filme aborda o universo de prostitutas, bêbados,
artistas, gays e pequenos golpistas, sendo o próprio João homossexual negro. Uma
questão também explícita é a estrutura social excludente do Rio, onde a
violência e o preconceito contra os negros e gays é extremamente forte. Nesse sentido,
o filme aborda bem os métodos usados como resistência pelos marginalizados e
excluídos da sociedade, como a capoeira, além de costumes, religião de origem africana.
O filme já inicia com a leitura de uma sentença proferida contra João,
condenado por homicídio doloso, e na qual exprime muito bem como a sociedade da
época o enxergava, julgando-o simplesmente como um desordeiro, um “torto” e
devasso que praticava atos repulsivos, e por isso ele mesmo se vê nessa vida
malandra, mesmo querendo uma vida profissional artística. Mas o filme nos
mostra um lado de João que cuida e protege os seus sempre que necessário, até
se envolvendo em brigas, e que luta para ganhar seu dinheiro e se “endireitar”,
como ele mesmo diz, nessa sociedade tão segregacionista e trans-homofóbica.
É fato que o Brasil é
um país de grande diversidade cultural, devido às inúmeras influências que
recebeu. A evolução dos direitos dos negros foi um caminho árduo e conflituoso,
no entanto, principalmente pela atuação de movimentos sociais, teve-se,
gradativamente, um olhar voltado a essas minorias. Posto isso, cabe igualmente falar
dos homossexuais, uma vez que João era e também sofria com a homofobia. Fazendo
um paralelo com a criminalização da homofobia e transfobia, que se concretizou somente
em 2019 com a ADO 26, nota-se como essa é uma luta colossal e intensa. Nesse
sentido, retomando a teoria do autor Antoine Garapon, que diz que a judicialização
do Direito vem acontecendo desde anos 90, o protagonismo dos tribunais nesses
assuntos só se dá justamente por terem sido provocados, como por movimentos
sociais e indivíduos, que demandam justiça e reivindicam a efetivação de seus
direitos. Assim, o magistrado, apesar de atuar em temas que não são de sua devida
competência, acaba intervindo em questões morais emergentes que cabem ao
legislativo, mas que por fim são de extrema importância para a sociedade, pois
garantem cada vez mais uma maior harmonia e igualdade, dando voz, espaço e
força às minorias. O Direito é um recurso à disposição de quaisquer autores e faz
parte da vida social; ele precisa ser mobilizado, como sustenta o autor Michael
McCann.
O filme passa longe de ser
uma mera espetacularização, pois mostra a realidade e trajetória nua e crua que
madame satã teve que enfrentar, tanto no cortiço em que morava quanto nos
lugares que frequentava, até sua primeira apresentação no bar do Amador. Ademais,
por mais que inúmeros avanços tenham sido alcançados, como muitos direitos que
foram positivados especificamente para proteger e tutelar essas minorias
marginalizadas e sem voz (negros e LGBT), o preconceito, a intolerância e a
violência ainda são intensos e preocupantes até hoje. Atitudes vexatórias e
discriminatórias, xingamentos e desrespeito (como ocorre no filme: “você está
vestido de homem ou de mulher?”/“maricagem”), infelizmente são enfrentados
diariamente por incontáveis cidadãos brasileiros, que se veem à mercê da
sociedade e da justiça. No fim do filme é dito que, em janeiro de 1942, João é
posto em liberdade após cumprir pena de 10 anos, e no carnaval do mesmo ano ganha
o concurso do bloco caçadores de veados com sua fantasia madame satã, além de
ganhar outros carnavais, obtendo a notoriedade e o reconhecimento como sempre sonhou.
João não teve uma vida fácil, e muito menos segura, e foi isso que fora
discutido no cine-debate realizado durante a VI semana de sexualidade e gênero realizada
na Unesp, contando com a presença de duas integrantes transexuais do coletivo
Casixtranha. Ambas relataram a dura realidade de como é ser transexual no
Brasil, todos os preconceitos, medos e adversidades que enfrentam por
simplesmente serem quem são, mas, ao mesmo passo em que também mostraram como recebem
muito apoio e força daqueles que simpatizam com suas causas e com o movimento LGBT
em si. Por fim, apesar do notório crescimento de pensamentos extremistas e
conservadores no país e o no mundo, acontecimentos como a criação da lei do
racismo no7.716 e da atual criminalização da homofobia demonstram
que, apesar da morosidade, essas minorias estão sendo vistas pelo Direito, mas
a luta está longe de ter um fim.
Raquel Colózio Zanardi –
1o ano Direito (matutino)
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