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domingo, 12 de dezembro de 2021

O homem e a mulher invisíveis

Hoje acordei com MAIS UMA notícia de que MAIS UM corpo negro havia sido eliminado. A notícia teve pouca repercussão, horas depois as pessoas já falavam sobre o aumento no preço da gasolina e sobre como o preço do dólar vem aumentando. É, negro morrendo não é novidade. Nós estamos acostumados com a produção da morte, mas não é sobre qualquer morte, é sobre a morte do corpo negro. Esse corpo negro que foi eliminado (e quase ninguém – até mesmo o Direito – se importa com isso) deixou uma filha. Essa menina, de apenas 7 anos, crescerá se perguntando o motivo de seu pai, árduo trabalhador, ter tido sua vida ceifada. 

Quando fui ao mercado na mesma tarde do acontecido, vi algumas pessoas conversando sobre e uma delas disse: “Nossa, mas eu entendo a atitude dos policiais. Vai saber se esse sujeito não ia fazer alguma coisa né?! Nunca se sabe, olha só para sua origens”. No momento em que ouvi aquilo era como se a pessoa estivesse falando latim, essa frase (se é que pode ser chamada de frase) proferida pela pessoa não fazia nada de sentido pra mim (assim como o latim). Era totalmente incompreensível. A única coisa que surgiu no meu pensamento foi: “Pois é, Karnal não estava equivocado quando mencionou que o racismo é um pleno sinal de limitação intelectual do ser humano”. 

Fui embora muito atordoada e sem compreender como um indivíduo poderia pensar dessa maneira. Cheguei a me questionar se a pessoa era algum ser extraterreste que conseguia prever o futuro. Só assim para se ter tamanha certeza de que um sujeito negro (e somente por ser negro) poderia cometer um ato delituoso. Depois da intensa perturbação, pude entender o motivo desse indivíduo pensar como pensa - o processo de normatização da morte dos corpos negros é um projeto bem-sucedido. O mundo não só reproduz a morte do corpo negro, mas se relaciona tranquilamente com ela.

Bom, lastimavelmente, não é um raciocínio incompreensível (eu gostaria que fosse, pois, sendo incompreensível talvez não fizesse sentido para ninguém manter). Podemos dizer que o capitalismo sempre necessitou de um discurso de inferioridade de raças para poder dominar o restante do mundo. A questão de raça não passa de uma ficção útil ao capitalismo. Racismo é uma tecnologia de poder.  Raça é uma construção realizada pelos europeus como forma de “justificar” o processo de dominação realizada durante anos e que ainda ocorre nos tempos atuais (mesmo que de forma indireta e não tão perceptível como no Imperialismo). 

Achille Mbembe, autor africano e negro, menciona sobre “A crítica da razão negra”. De acordo com os escritos de Mbembe, a partir da modernidade, a racionalidade negra vem sendo compreendida como a não-existência, o não-ser, o não-pensamento, o não-lugar. Vem sendo compreendida como tudo o que remete à animalidade ao invés de humanidade. Essa “razão negra” é um discurso produzido pelo ocidente, pelo homem branco. A morte do corpo negro não é um acidente, não é por acaso. A morte do corpo negro é um projeto capitalista, é um projeto de muitos Estados. A morte do corpo negro é um dos mecanismos de dominação existentes. 

    Todas essas análises me deixaram ainda mais atordoada. Quando cheguei na aula de Direitos Humanos da faculdade eu não conseguia entender como o Direito não se importava com tudo isso. Não é novidade para ninguém que todos temos direitos fundamentais previstos internacionalmente em tratados jurídicos importantes. Mas como ainda prevalece essa lógica de que existem corpos que são matáveis? Como existem corpos que estão expostos à absoluta matabilidade? Como existem corpos em que sua inteira existência é reduzida a uma vida despojada de todo direito? Entenda – O RACISMO É UMA TECNOLOGIA DE PODER. É UMA TÉCNICA DE DOMINAÇÃO FUNDAMENTAL PARA CONTROLAR O CAPITAL. 

O Direito não se preocupa com a questão de raças, pois na maioria das vezes, as leis e o Direito são feitos para as classes dominantes, e o Estado é utilizado como meio político e econômico para que essa classe consiga inserir seus interesses na estrutura social. É com pesar que afirmo que vivemos em uma estrutura na qual o Estado serve de manutenção para os interesses de uma classe dominante. Com o desenvolvimento do Estado contemporâneo, pode-se perceber o estabelecimento de certos processos de dominação. Entenda – não existe política sem a implementação de certos mecanismos de dominação. 

A partir dessa perspectiva, podemos perceber como o termo cunhado por Mbembe – Necropolítica – é extremamente importante para a compreensão das estruturas postas e da percepção de que a questão de raças não interessa ao Direito. Segundo o autor, esse conceito descreve como, nas sociedades capitalistas, o Estado define quem deve viver e quem deve morrer – é uma política da morte. Ademais, o Estado de emergência e o Estado de exceção são constantemente utilizados como forma de legitimar a suspensão de direitos daqueles rotulados como inimigos (sabemos que o corpo negro é, muitas vezes, visto como inimigo). 

Se o Direito é um meio utilizado (quase que sempre) pelas estruturas dominantes e convencionais para concretizarem os seus interesses, é mais do que claro que não interessa aos dominantes debater sobre a condição dos dominados. Ademais, para se construir uma base teórica mais concreta e visível acerca de como o Direito não se importa com a questão de raças, basta a realização de análises de dados. A música brilhante de Racionais MC’s evidência bem isso ao mencionar que “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoa mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo”. Os dados são claros, basta observarmos. 

No entanto, não podemos permitir que essa condição se mantenha, temos que lutar pela sobrevivência da HUMANIDADE (e o corpo negro faz parte disso). Devemos sair do ensino eurocêntrico e convencional. Devemos lutar todos os dias para que os direitos positivados (direito à vida, à liberdade, à igualdade) sejam de fato postos em prática para todos os indivíduos. Devemos lutar para romper com a estrutura que está posta para segregar, para deixar o negro distante. Temos que lutar pela transformação do aspecto simbólico em aspecto prático. Bom, espero que amanhã eu possa acordar com uma notícia de que a justiça foi feita e de que os culpados foram responsabilizados. Esse desejo pode ser plena utopia, tendo em vista que todo mundo pode matar um corpo negro sem cometer homicídio. Mas, ainda não esperanças.


Livia Gomes 
Turma XXXVIII
Noturno


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