A ADI 6987, originada de uma petição do partido Cidadania, trata da possibilidade
de equiparação da chamada injúria racial ao crime de racismo. Assim, o embate
se dá na compreensão de quem é o ofendido por atos de injúria que se baseiam na
raça ou cor, isto é, se apenas o indivíduo é lesado pelo preconceito ou se toda
a coletividade é prejudicada. No que Bourdieu chamou de “espaço dos possíveis”,
especialmente no campo legislativo, ambas as formas de ofensas raciais estariam
cobertas pelas leis brasileiras, sendo, teoricamente, para o legislador,
possível diferenciá-las. O problema, porém, se dá na prática, quando um
magistrado comum tem de responder frente a um caso se o crime cometido pelo acusado
é de injúria, crime prescritível e afiançável, ou racismo, crime que não
prescreve nem admite fiança. Nesse caso, o direito não estava, nos termos de Bourdieu,
racionalizado, posto que o espaço para a argumentação e decisão dos juízes era
muito maior que o necessário, de modo a permitir decisões confusas e
incoerentes. Sendo assim, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal pretende
racionalizar e universalizar o direito frente às demandas por igualdade racial.
Quando se analisa o histórico da legislação brasileira sobre o tema, é
possível observar que a primeira lei que diz respeito a ofensas direcionadas a
alguém por sua raça e cor é ainda de 1951, porém, a contravenção penal dizia
respeito apenas aos casos em que o acesso a serviços, bens e trabalho eram
negados por motivações racistas, excluindo, por exemplo as ofensas verbais ou a
violência derivada das mesmas causas. Além disso, a lei ainda previa o crime
como afiançável e de penas de prisão curtíssimas, que variavam entre 15 dias e
1 ano, muito diferente da forma penal hoje estabelecida. Assim, é possível
constatar primeiramente, que a primeira lei que tentava coibir o racismo no Brasil
somente foi posta em vigor muitas décadas depois do fim da escravidão e, em
segundo lugar, que a lei de 1951, apesar de sua importância, não seria capaz de
impedir injúrias de origem racista atualmente, sendo de suma importância uma
atualização dos conceitos de racismo e a consequente alteração das penas
atribuídas àqueles que cometerem crimes desta natureza.
A ação do STF não pode ser considerada como um mero ativismo judicial,
posto que o órgão foi instado a responder a um pedido formalizado pelo partido
político. Além disso, apesar de à primeira vista parecer que os ministros
estavam decidindo questões meramente penais, do ponto de vista de tutela de
direitos apresentada por Garapon, o que se vê é a consolidação do direito à
identidade racial, posto que se passou a compreender que uma injúria destinada
a uma pessoa por pertencer a um grupo, é na verdade, uma ofensa a todos aqueles
que partilham de uma mesma identidade. Outro ponto importante de ser destacado é
o de que a decisão do STF não ameaça a democracia ou a separação dos poderes, até
porque a partir dela, novos projetos de lei sobre o assunto foram protocolados
nas casas legislativas, como é o caso do PL 4566/21, o qual tipifica a “injúria
racial coletiva”, fortalecendo os debates sobre o tema.
Neste caso, quem mobilizou o direito foi um partido político, porém o faz
em nome de toda uma coletividade para promover mudanças na vida social. No
nível estratégico, a decisão judicial é capaz, como já se viu, de modificar os
paradigmas legislativos de modo que as lutas posteriores possam se dar em
campos diferentes do poder. Já no nível constitutivo, é possível vislumbrar a
possibilidade de mudanças na cultura social e nos hábitos cotidianos, sendo a
lei e o conhecimento da punição algo que, idealmente, inibe a prática desses
delitos.
Assim, a equiparação, quando busca ouvir pessoas de diversos lugares e
raças, é capaz de promover uma maior ecologia de saberes para que a monocultura
do que se entende por justiça e saberes válidos possa ser quebrada. Por fim, a
teoria de Mbembe é capaz de explicar, indiretamente, como a injúria racial é
apenas uma das faces do racismo, isto é, que por mais que a ofensa pareça
pessoal, na verdade, ela atinge toda uma coletividade. Isso porque, como explica
o teórico, a efabulação e o alterocídio tentam criar uma figura que se pretende
“universal” e única de um conjunto de pessoas, transformando toda a pluralidade
e individualidade das pessoas pretas em uma construção única de o que é “o
negro”, que é colocado como um diferente, um inimigo, ou alguém que deve ser
eliminado. Dessa forma, a própria lógica preconceituosa justifica que o racismo
e a injúria sejam equiparados.
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