O HC
154.248/DF sob uma ótica sociológica
O
partido Cidadania, ajuizou a Ação direta de Inconstitucionalidade (ADI 6987), em função do artigo 140, §3º, do
Código Penal com o objetivo de tipificar a “injuria racial” como racismo de
acordo com a jurisprudência (STJ), ou seja, para atribuição de interpretação
constitucional do crime “ofender individuo em sua honra subjetiva por elemento
racial” seja considerado como racismo, portanto enquadrada no artigo 20 da Lei
° 7.716/89 e de acordo com a Constituição federal “imprescritível e
inafiançável (art. 5º, XLII, da CF/88). A ADI 6987 foi proposta diante do entendimento nesse sentido, obtido pelo STF com julgamento do HC
154.248/DF.
Desse modo, de acordo com Pierre Bourdieu, “(...)
no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de
apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial”
(p. 213), Esse fenômeno é denominado por Boudieu, como “espaço dos possíveis” no
qual demonstra que a interpretação jurídica possibilita que os juízes concebam
o melhor entendimento para atender as demandas requeridas por grupos por hora
injustiçados. Assim, o entendimento de equiparar a injuria racial ao crime de
racismo, fundamentado pela Constituição Federal e à lei Lei °
7.716/89 (Lei que Define os crimes resultantes de
preconceito de raça e de cor), não está dentro do rol de impossibilidades, já
que injuria racial nada mais é que um uma forma de pratica racista direta.
Dentro do que Bourdieu chama de chama de “Universalização
da Norma”, que é “recurso sistemático ao indicativo para
enunciar normas” (p. 215), o Ministro Edson Fachin ao declarar seu voto no HC 154.248/DF conclui seu raciocínio com a
afirmação:
(...)
na esteira de aproximar os tipos penais de racismo e injúria, inclusive no que
se refere ao prazo para o exercício da pretensão punitiva estatal, aprovou a
Lei no 12.033/09, que alterou a redação do parágrafo único do art. 145 do
Código Penal, para tornar pública condicionada, antes privada, a ação penal
para o processar e julgar os crimes de injúria racial. (HC 154.248/DF, 2021, voto:
Ministro Edson Fachin, p. 15)
Ou
seja, o juiz fundamenta seu entendimento com base nas próprias normas, de forma
impessoal e mantendo-se isento de paixões, o que Bourdieu também chama de
Neutralização da Norma (p. 215).
Dado
o momento em que o HC 154.248/DF, 2021 foi julgado, 133 anos após a abolição da
escravidão (1888),ainda temos em nossa sociedade um racismo estrutural, no qual
as pessoas negras ainda não foram inseridas de forma equitativa em nossa
sociedade, principalmente quando se fala sob o ponto de vista socioeconômico.
Como diz bem o Ministro Edson Fachin em seu voto no HC 154.248/DF, (2021):
Esse
sistema é, sem dúvida, uma das marcas deixadas no país pela escravidão. Após a
abolição da escravatura, a ascensão do negro à condição de trabalhador livre
não foi capaz de alterar as práticas sociais discriminatórias e os rótulos depreciativos
da cor de pele (muito embora, do ponto de vista biológico, não existam raças
humanas). A falta de qualquer política de integração do ex-escravo na sociedade
brasileira, como a concessão de terras, empregos e educação, garantiu que os
negros continuassem a desempenhar as mesmas funções subalternas. Assim, no Brasil, criou-se um aparato apto à
manutenção da exclusão e da marginalização sem que fossem instituídas leis
discriminatórias propriamente ditas. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Edson
Fachin, p. 4).
Dado isso, o equiparar a injuria
racial ao crime de racismo, o STF estará realizando o que Bourdieu conceitua de
“Historização da Norma” como ele bem descreve: “adaptando as fontes a
circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidade inéditas (...)”. (p.
223). Pois, passados mais de um século da abolição da escravidão, ainda existe
a segregação velada entre negros e brancos, consubstanciada pelo racismo
estrutural, portanto faz – se necessário que ordenamento jurídico preveja
punição à todos que ainda manifestem reações racistas, incluindo a injuria
racial.
Desse modo, o que pode ser
interpretado de ativismo judicial, busca-se apenas uma solução jurídica, com a
equiparação da injuria racial ao crime de racismo com a viabilização do próprio
direito em prol de um grupo historicamente não incluído de maneira igualitária (social,
economicamente e politicamente) em nossa sociedade. Como esclarece Luiz Roberto
Barroso: “Ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando
decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos
representantes do povo”. (p. 11).
Assim sendo, os sujeitos tutelados
representam mais de 50 % da população
brasileira (entre negros e pardos segundo IBGE, 2020), não se tratando por
isso, de paternalismo judicial, na verdade trata-se de uma interpretação
jurídica para combater o racismo estrutural que existe no Brasil e é papel do
STF, como guardião da constituição dar sua palavra sobre o tema, conforme Luiz
Roberto Barroso declara:
“(...)
o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é
velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais,
funcionando como um fórum de princípios – não de política – e de razão pública
– não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções
religiosas”. (p. 12).
À
vista disso, “O juiz deve colocar-se no lugar da autoridade faltosa para
autorizar uma intervenção nos assuntos particulares de um cidadão.” (GARAPON,
p. 150). Desse modo, ocorre o que Antoine Garapon caracteriza de “Magistratura
do Sujeito”, na qual o juiz é requisitado para dar uma solução dentro do
ordenamento jurídico dentro de uma falta de clareza explicita no mesmo. O que
de certa forma, pode ser caracterizado como uma “antecipação” como esclarece
Garapon “O direito do juiz não pode ser outro senão um direito para o amanhã.” (p.
146), pois se faz necessário conscientizar a sociedade que a injuria racial é
um crime e ao ser equiparada ao racismo como “imprescritível e inafiançável “(art.
5º, XLII, da CF/88), o que na falta de uma iniciativa do congresso, o STF pode
antecipar a norma através da interpretação jurídica.
O que se observa com essa decisão histórica de jurisprudência no HC 154.248/DF
(2021) é um fortalecimento do estado democrático de direito. Tendo em vista que
a Constituição Federal não faz distinção em cidadãos de segunda categoria, como
estruturalmente ocorre no Brasil com relação às pessoas negras. E a injuria
racial é uma prática racista na qual ofende a dignidade da pessoa ao mesmo tempo
que à inferioriza perante o ofensor, como o Ministro Edson Fachin disserta em
seu voto no referido HC:
A
injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e
estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado,
o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também
demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige
contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A
distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima
da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra
o grupo ao qual pertence. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Edson Fachin p.
13).
O que acontece de fato, é o que Michael
McCANN caracteriza como: “(...) mobilização do
direito se refere às ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da
realização de seus interesses e valores.”. (McCANN, 2010), p. 182). Nessa
perspectiva, o indivíduo sozinho, partidos políticos e os movimentos sociais,
como no caso o movimento negro e LGBTQI+, podem ser os mobilizadores do direito
em busca de reparação e equidade de tratamento.
Sendo assim, ao equiparar a injuria
racial ao crime de racismo, o STF, com essa decisão também poderá acender um
alerta aos outros poderes, os agentes do estado e da sociedade como um todo
sobre o racismo estrutural que existe no país e que deve ser combatido. Essa mudança de acordo com MacCANN ocorre no
nível estratégico e: “procura analisar como as ações judiciais configuram o
contexto estratégico dos outros atores do Estado e da sociedade” (MacCANN,
2010, p. 184).
Na mesma linha, essa decisão, de
acordo com MaCANN (2010,p.188) permite a promoção mudanças no “nível constitutivo” nas
quais conjugam diretrizes que a sociedade deve entender e acolher, como pode se
observar no excerto “...a interpretação constitucional dos tribunais afirma
visões de uma boa e legítima sociedade, visões que outros são encorajados a
aceitar” (p. 189).
Não obstante, tem-se, não menos
importante, o aspecto em que Sara Araújo (2016, p. 96-97) chama de “monocultura
do saber e do rigor do saber”: “transforma a ciência moderna e da alta
cultura em princípios únicos de verdade e qualidade estética”. Ou seja,
parte-se de uma dogmática única, não abrindo espaço para outras leituras do
conhecimento. Nessa lógica, temos o voto do Ministro Nunes Marques que proferiu
“(...) pedindo vênia ao eminente Relator, entendo que a hipótese de
imprescritibilidade da injúria racial só pode ser implementada pelo Poder
constitucionalmente competente, o Legislativo.” Por outro lado, Sara Araújo
(2016, p.110) fala também sobre o conceito de “Ecologia dos Saberes” onde se
confronta a ideia dogmática do direito liberal, apresentando uma forma de
entender o direito de acordo com concepções pluralistas. Essa ideia de Ecologia
dos Saberes é vista no voto do Ministro Luiz Fux no HC 154.248/DF (2021):
O
avanço no combate ao racismo, contudo, passou a ser contornado em razão do
prazo ínfimo de prescrição do delito de injúria racial, inviabilizando tempo
hábil para uma justa prestação jurisdicional e para a efetiva punição dos
delitos de ódio tipificados em nosso ordenamento.
Mais
do que isso, a própria concepção do que seja racismo vem passando por mutações,
entendendo-se que se trata de um conceito com dimensão social, e não meramente
biológica, mesmo porque inexistem raças na espécie humana. Assim se encaminhou
a nossa jurisprudência, no julgamento de causas que envolveram antissemitismo e
homofobia, de modo a conferir proteção permanente a todos os grupos vulneráveis
– grupos que foram vulnerabilizados, ao longo da história, pelos poderes
políticos e por maiorias eleitorais. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Luiz
Fux, p. 2-3).
Por
fim, outra análise que pode ser feita desse julgado é que a acusada procurou
diminuir a vítima, pelo fato dela ser negra, como pode ser constatado na
descrição dos fatos contidas no
No
momento de efetuar o pagamento por meio de cartão de crédito, a acusada,
voluntária e conscientemente, demonstrando nítida intenção de injuriar,
referiu-se à vítima com as expressões preconceituosas ‘” negrinha nojenta,
ignorante e atrevida’ (...)”. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Alexandre de
Morais, p. 1).
Essa forma de anulação e
descaracterização da pessoa negra pela cultura branca hegemônica são citadas
por MBEMBE no capítulo I do seu livro “Crítica da Razão Negra” (2014,
p. 25-74) como ausência, efabulação, alterocídio, desumanização, etc.
Dado o exposto, uma visão
sociológica do direito é importante para melhor compreensão dos fenômenos
sociais da sociedade brasileira. Já que, é o mesmo direito que pronuncia as
normas de conduta e pode ser usado tanto para equiparação social quanto para o contrário.
No caso da jurisprudência firmada com o HC 154.248/DF (2021), espera-se que ocorram
mudanças tanto no nível estratégico quando no nível constitutivo da sociedade,
afinal injuria racial não deixa de ser um crime que realça o ódio, tanto quanto
o racismo, portanto não devem ser entendidos de maneira distinta. Assim,
espera-se que a ADI 6987, prospere.
Por: Joel Martins S. Junior
Aluno do 1º ano de Direito
(Noturno) – UNESP/Franca – SP.
ARAÚJO, Sara. O primado do
direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o
cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.o 43, set/dez 2016, p. 88-115.
BARROSO, Luiz Roberto. “Judicialização,
ativismo judicial e legitimidade democrática”. Revista Atualidades
Jurídicas, n. 4, jan/fev-2009, Brasília: OAB Editora.
BOURDIEU, Pierre. “A força
do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”. O Poder
Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989 [Cap. VIII, , p. 209-254].
BRASIL. STF. HABEAS CORPUS
154.248 – DF. Pcte: Luiza Maria da Silva. Impte.: José Gomes de Matos Filho
e Outros. Relator Ministro Edson Fachin. 18 de outubro de 2021. O
Tribunal, por maioria, denegou a ordem, nos termos do voto do Relator, vencido
o Ministro Nunes Marques, que concedia a ordem para reconhecer a extinção da
punibilidade da paciente (...). 118p.
GARAPON, Antoine. O Juiz e
a Democracia: O Guardião das Promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999. [Cap.
VI – A magistratura do sujeito, p. 139-153]
MBEMBE, Achille. Crítica da
razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. [Cap. 1: “A questão da raça”, p.
25-74]
McCANN, Michael. “Poder
Judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos “usuários” In:
Anais do Seminário Nacional sobre Justiça Constitucional. Seção Especial da
Revista Escola da Magistratura Regional Federal da 2a. Região/Emarf, (2010) p. 175-196.
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