Elástico vivo
No século XIX, durante o florescimento da categoria “ciência” a partir de uma sistematização metodológica e objetiva dos saberes, os conhecimentos das áreas naturais tornaram-se objeto de destaque e influíram diretamente e de forma generalizada na própria definição do que seria ou não considerado “científico”. Nesse contexto, para também adquirirem credibilidade, as ciências humanas passaram por uma tentativa de aproximação a aspectos característicos às ciências exatas e naturais, de maneira que suas primeiras formulações foram intensamente marcadas por uma preocupação com a ideia de imparcialidade, com análises que se propunham "esterilizadas" de concepções prévias ou ideológicas. Assim, na posição de um dos primeiros teóricos das ciências sociais, Émile Durkheim também buscou desenvolver um método de compreensão da sociedade que não fosse marcado por suas concepções prévias, tecendo críticas inclusive à metodologia de August Comte quanto à utilização da ideia abstrata de “progresso” enquanto parâmetro condicionante de análise dos fenômenos da sociedade.
Partindo desse cenário de centralidade das ciências naturais, Durkheim tentou colocar-se em “suspensão” da vida social e se estabelecer enquanto um mero observador analítico: de forma quase alusiva à ideia biológica de tendência ao equilíbrio de certos sistemas fechados, constatou uma predisposição do corpo social de uniformização de comportamentos e de manutenção de valores compartilhados a partir de um forte mecanismo coercitivo. Assim, a sociedade poderia ser entendida como se delimitada por um elástico que pouco consegue ser deformado: quem ousa tentar romper seus contornos encontra grande resistência dos componentes que os constituem, podendo inclusive, como uma “reação elástica”, ser lançado de volta com violência a um “ponto social” mais comumente aceito. Um exemplo concreto e propositalmente hiperbólico para ilustrar a situação é o de um indivíduo que faz uma aparição utilizando roupa de banho em um evento socialmente considerado formal, como um baile de formatura: coletivamente, cria-se um imaginário compartilhado de expectativas e de protocolos comportamentais adequados a cada situação que, quando são quebrados, causam estranhamento e mesmo uma rejeição e isolamento do indivíduo desviante; o elástico de expectativas e a resistência de sua ruptura.
Nesse sentido, observa-se uma perfeita adequação da teoria coercitiva de Durkheim para a análise do fenômeno social apelidado de "cancelamento". Principalmente na última década, com a explosão das redes sociais e com o estabelecimento de uma rede global de troca de informações instantânea, tem-se que comportamentos e opiniões advindas tanto de personalidades quanto de sujeitos comuns podem ser mais facilmente divulgadas, compartilhadas e principalmente, julgadas. Desse modo, com a criação dessa extensa rede de observação mútua, qualquer mínimo desvio torna-se passível de registro e, consequentemente, de linchamento e de isolamento forçado de sujeitos, que se tornam descredibilizados e “cancelados” como se não estivessem aptos para uma vivência em sociedade, sendo condenados ao ostracismo.
Assim, percebe-se que as especificidades da vida contemporânea, principalmente quanto à formação e ao desmanche de laços sociais no contexto da internet e dos “cancelamentos”, complexificaram as relações e maximizaram as consequências punitivas dos desviantes daquilo observado há séculos por Durkheim. Contudo, apesar da resistência do elástico social que busca manter a coesão, é evidente que sua delimitação não é completamente rígida: mesmo com a relutância e repressão sofridas individualmente, o elástico vai aos poucos sendo remodelado conforme as marcas deixadas pelo tempo e pela história. Portanto, percebe-se que o paralelo estabelecido com as ciências naturais por Durkheim confirma-se ainda no presente: a sociedade é realmente um organismo vivo que, de forma contraditória, devora a si próprio em uma tentativa de se manter funcional.
Isabella Neves- matutino
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