Augusto Comte trabalhava no pós vida. Assim como qualquer outra pessoa que, em vida, foi excepcional, influenciou vários povos e futuras gerações e mudou a visão da sociedade como um todo. Com seus estudos e teorias sobre o Positivismo, nada mais justo que o próprio tivesse esse direito. Seu emprego era, por falta de exemplos mais compatíveis, de recepcionista. Mas não qualquer um, pois ele era o recepcionista das almas dos mortos no Submundo. Já trabalhou como adestrador de cachorro para cuidar dos chacais de estimação de Anúbis, ajudante de Valquíria, que levavam as almas dos heróis até Valhalla, e até poleiro de pássaros, para que os corvos de Morrigan pousassem em seus braços depois de se esbaldarem em carniça. Hoje trabalhava para o próprio Hades, considerava uma evolução. Nada mais satisfatório que provar suas teorias usando a si mesmo de exemplo, afinal, se todos aceitassem seus cargos, dados por seres superiores, e seus lugares sociais, como ele fez, suas existências seriam contempladas com algum favor dos deuses.
Era estranho pensar em criaturas divinas e, ainda pior, em um
contingente de servos presos em um estágio teológico impossível de escapar, sem
chance de progresso. Por sorte, Comte era um indivíduo evoluído e conseguia
perceber as falhas daquela sociedade fantasmagórica. Tão evoluído que, um dia,
seria um dos Grandes Juízes do Submundo, aqueles que decidiam para qual Campo
as almas recém-chegadas iriam: de Punição, para pessoas impuras e impiedosas;
de Asfódelos, um território neutro para pessoas insignificantes; e os Elísios, lugar
apenas para os mais honrados heróis. Augusto gostaria de ser um Juiz, mas não
teria ambições tão exorbitantes, faria o trabalho braçal com honra e aceitaria
convenientemente o momento em que seu valor fosse reconhecido. Daqui uns
séculos, talvez, os deuses o agraciariam.
Falando em Juízes, havia um julgando as últimas
almas do recebimento mais recente do barqueiro Caronte. O positivista estava
surpreso, fazia um tempo que não aparecia uma figura tão inusitada: uma mulher
relativamente jovem, da pele negra e usando calças. Ela contava sua história,
filha de pais pobres, lutava para conquistar um lugar em uma faculdade
conceituada e morreu atropelada quando tentou salvar um gatinho no meio da rua.
Seu destino foram os Campos Elísios, o que Comte considerou um absurdo. Como
pode uma pessoa que renega seu papel social predefinido e colabora para uma situação
de conflitos, impedindo a evolução de sua sociedade, ser tão bem contemplada? Uma
mulher que estuda e trabalha? Quem cuidará da casa? Pobre que almeja grandes
conquistas? A sociedade ficará desequilibrada, pois ninguém irá fazer o
trabalho braçal. Uma pessoa deveras egoísta, nem um pouco solidária, pensando
apenas na felicidade própria e mesmo assim ganhando tão grande recompensa.
Aparentemente, o espírito do Juiz ainda não amadureceu, pois
parecia incapaz de entender a falta de lógica e de ordem na situação. Antes que
o recepcionista pudesse reclamar, um político cristão apareceu. O homem era um
corrupto que utilizava violência para permanecer no poder, e foi banido para a
punição eterna. Justo, para Comte, pois ele impedia o acesso da população à
política, único poder que deveria ser acessível a todos, além de ser completamente
imoral, corroborando um regresso social.
Após isso, veio outro homem, dessa vez um
europeu, que utilizava seu poder econômico para levar o progresso às sociedades
mais atrasadas no século XIX. Quanto mais ele falava sobre avanços
tecnológicos, humanidade moderna e ordenada, com estruturas definidas e rigorosas,
leis efetivas e relações invariáveis de sucessão e similitude, mais os olhos de
Comte brilhavam. Quando a condenação foi o Campo de Punição, o brilho se apagou
completamente. Era basicamente sua teoria em ação, uma sociedade desenvolvida,
estudos sociais tão racionais quanto o da gravidade e o progresso sendo
alcançado, não havia nada de errado. Depois, o positivista descobriu sobre como
sua análise foi realmente utilizada, apenas como desculpa para interesses
próprios, e lhe restou apenas rir de sua tolice, imaginar que algum dia um
grupo de humanos seria tão perfeito quanto na teoria. No fim, levou cada alma para o portão de seu Campo destinado, sem pestanejar. Comte, então, decidiu passar
o resto do pós vida apreciando e estudando as sociedades vindouras, pois elas
tinham muito a ensinar.
Micaela Mendonça Herreira - Direito noturno - 1o ano
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