Sara Araújo em seu artigo "O primado do direito e as exclusões abissais" explana e propõe a ideia de que a universalidade e unicidade do direito é um mito colonialista prejudicial para ele próprio. Passando pela história do direito ela associa a imposição deste mito com a expansão do modelo colonial e capitalista, fazendo isso por meio da aparência de sistema legal neutro e justo, ele na verdade perpetuaria as injustiças e opressões internas ao sistema sob o pretexto de seguir a lei.
O pensamento ocidental ao longo de sua história é acima de tudo um pensamento de restauração do que considera como grande em sua história, em especial seu passado greco-romano. Ambas as culturas, que se fazem até hoje o estandarte de grandeza materializado deste pensamento, foram culturas universalizantes. A helenização e romanização do mundo até hoje influencia a categorização das ideologias que surgem no ocidente, sendo elas sempre consideradas o certo e o civilizado, e na sua aplicação tendo um grande ímpeto, herdado deste mesmo passado e compartilhado por quase todas elas, de "civilizar" os "bárbaros" da vez que delas ainda não partilhem.
O que antes era um discurso inflamado de Cato aos seus pares no senado romano acerca dos rituais de infanticídio cartaginenses, certamente finalizado com a célebre frase, "Carthago delenda est!", é hoje o discurso dos senadores americanos ou burocratas de algum comitê da ONU acerca das leis opressivas, aos seus moldes, dos chefes tribais afegãos ou de algum país do oriente médio acerca das mulheres e homossexuais.
Neste artigo, Sara relata brevemente um estudo conduzido por si com fim de catalogar esses direitos "paralelos" numa cidade de Moçambique. Tendo enfoque em 3 casos principais: das esquadras de polícia, onde os policiais de uma unidade serviam como mediadores de pequenas disputas. De uma ONG e uma organização estatal, ambas focadas no atendimento de mulheres vítimas de violência e de mediação de conflitos. Porém, há de se ir além no caso brasileiro, onde não só há instâncias análogas às do estudo africano, mas também outros casos particulares à América Latina e ao "Sul" como um todo; Os tribunais paralelos de organizações locais e paramilitares.
Para esta breve análise deste "choque" entre os direitos é possível trazer o julgamento do Processo Nº 0002659-84.2015.8.12.0021, onde um juiz da 1ª instância de uma vara criminal mato-grossense condena 7 envolvidos no julgamento e decretação de pena capital em um acusado de abuso infantil da comunidade informalmente sob sua jurisdição. Tais exemplos coalham o judiciário brasileiro e latino americano diariamente, análogos em forma às diversas formas de julgamentos executados por "conselhos tribais" por todo o "sul" global, existem neles seus próprios códigos processuais, leis e punições. Tribunais estes que não são reconhecidos pelo direito convencional e que na verdade são ostensivamente perseguidos e ilegitimados. Também pode ser citado este choque no caso do "conselho municipal" que condenou a irmã de 16 anos de um homem acusado de estuprar uma garota de 13 anos fosse estuprada pelo irmão da vítima como punição pelo crime de seu próprio irmão, o caso aconteceu na cidade de Multan, no Paquistão. O governo paquistanês prendeu 25 integrantes deste conselho por considerar o julgamento ilegal. *
O que traz a controvérsia da questão inclusive abordada de passagem pela autora original como uma das razões para a oposição à pluralidade dos direitos; a possível injustiça destes outros sistemas legais. Existiria algum limite para o qual algo é direito ou não? Um sistema híbrido onde operam concomitantemente os supracitados tribunais do crime e o "conselho municipal" juntamente com o sistema legal moderno de qualquer país é de fato mais plural do que um sistema legal enrijecido e uno. Porém seria esta pluralidade algo a ser buscado ou desejado? Quais seriam os limites destes sistemas e quem poderia ditá-los sem fazer papel de "colonizador", jogando do "lado de lá" da linha abissal estes direitos locais movido por suas próprias concepções "nortenhas" de justiça? São estas perguntas que incitam reflexões interessantes e necessárias para a melhor compreensão destes conflitos e são possivelmente as parteiras de uma solução vindoura para este impasse.
* https://www-thescottishsun-co-uk.translate.goog/news/1340063/outrage-as-girl-16-is-sentenced-to-be-raped-by-pakistani-court-in-retaliation-for-her-brother-sexually-abusing-a-13-year-old-girl/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=en-US
Rafael C. M. Martinelli 2o sem/direito/noturno
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