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sábado, 4 de dezembro de 2021

Narciso e Eco , Norte e Sul .

     O mito de Narciso e Eco é uma narrativa da mitologia  grega  que conta a história de um rapaz que só olhava para si próprio, e por isso , foi condenado a se apaixonar por alguém que não corresponderia ao seu amor, nesse caso ele se apaixonou pelo seu próprio reflexo. Eco era uma ninfa que, por falar demais , também foi condenada pelo Deus Juno a  repetir, estritamente, as últimas palavras escutadas. Nesse sentido, enquanto Narciso fica petrificado olhando para sua imagem e dizendo: amo-te, volta para mim, Eco que é apaixonada por Narciso repete “ volta para mim “, “ para mim”, ou seja, Narciso não conseguia ver nada a sua volta a não ser o reflexo da sua imagem, era como se outros não existissem .Além disso, Narciso conta com o consenso de Eco , que só repete e valida tudo que ele diz , sem questionar , pois Juno retirou essa autonomia dela .

É possível fazer um paralelo entre o mito supracitado e o artigo da jurista Sara Araújo ;O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Os estudos de Sara Araújo esclarece que o direito moderno eurocêntrico é um instrumento poderoso de reprodução do colonialismo, que promove exclusões abissais (p.88).Nesse aspecto, ela também esmiúça com primor a metáfora do pensamento abissal , proposto , inicialmente, pelo  professor Boaventura de Souza Santos. De acordo com esta análise , o pensamento moderno impõe e estabelece os limites de uma linha abissal que divide o mundo entre o universo “ deste lado da linha” e o “universo do outro lado da linha"(p.96), ou seja, tudo que é posto pelo norte é considerado válido, legítimo e  digno, enquanto que toda forma de conhecimento, costumes,  engendradas no sul são considerados atrasados . Desse modo, temos o norte como Narciso e para o  sul foi imposto o papel de Eco, no sentido de reverberar o que é dito lá, da mesma forma que o Deus Juno condenou Eco a repetição o sul também  foi condenado , ou ao silêncio , ou  somente  falar se for palavras ou conceitos repetidos.

A Ação Direta  de Inconstitucionalidade  (ADI) número 4439/STF à luz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (lei 9.394/96)  permite uma análise a partir dos conceitos elucidados por Sara Araújo .Na referida ação, a Procuradoria Geral da República impetrou uma ADI em face da inclusão de ensino religioso confessional, que consiste em uma disciplina que segue os ensinamentos de uma  religião específica . A PGR entendeu que a inclusão desse ensino estava em desacordo com o artigo 19,inciso I ,da  Constituição Federal , pois além dessa disciplina ser extremamente tendenciosa ela ainda faria com  que o preconceito religioso se propagasse entre os estudantes , haja vista que o projeto inicial seria ter várias religiões distintas disponíveis  e o aluno por livre espontânea vontade participaria  daquela que melhor lhe convir. Mesmo sendo uma decisão óbvia , o STF surpreendeu e por seis votos a cinco e o pedido da PGR foi indeferido e a partir do dia 27 de setembro de 2017 , a disciplina passou a fazer parte do ensino público brasileiro, salvo escolas particulares. .

Sob esse viés , é possível depreender, portanto, que a Suprema Corte agiu de acordo com as epistemológicas fundamentadas no norte , pois é de conhecimento de todes  que  a população originária que habitava o Brasil  foram coercitivamente catequizado  pelos padres portugueses e , devido a isso outras formas de culto  foram invisibilizadas ou foram demonizadas , e somente a religião trazida pelos europeus , ou seja , o  catolicismo foi posto como sacrossanto, claro que atualmente o protestantismo, em especial , as igrejas neopentecostais tomou uma dimensão absurda. Nesse sentido , em seu artigo Sara Araújo destaca o trecho do pensamento do jurista estadunidense  Ralph Nader , “ (..) no contexto do colonialismo e do imperialismo, o primado do direito pode resultar em desordem e não em ordem, promovendo a continuidade da opressão , em vez da interrupção  da prática colonial (...)” , desse  modo , o STF deveria agir com o intuito de extirpar essa dicotomia, uma vez que as religiões consideradas não hegemônicas , sofrem preconceito e discriminação até hoje “.Além disso, Sara Araújo é precisa ao detalhar  que o direito espelha-se em cinco monoculturas jurídicas da razão metonímica, ou seja , torna uma parte com um todo, melhor dizendo , viabiliza somente o que é hegemônico e atribuí de modo persuasivo sua máxima a todos, atravessando todas as  barreiras geográficas .A vista disso, temos a carta de direitos humanos que é de matriz totalmente eurocêntrica , lembrando que a nossa Constituição é embasada nesses preceitos ,ou seja, não leva em conta as particularidades de cada país . Tanto que na mesma constituição que prevê a laicidade do Brasil, também dispõe no artigo 210 , que o ensino religioso , de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários  normais das escolas públicas de ensino fundamental .Desse modo, Sara Araújo afirma “ (...)A Constituição, ainda que seja intercultural,  não deixa de ser um instrumento eurocêntrico e está sujeita às diretrizes que vêm das regulações internacionais” .

Infere-se, portanto, que os conceitos explanados pela jurista portuguesa Sara Araújo é de extrema valia para população que está do outro lado da linha , ou seja , no hemisfério sul , uma vez que a partir do entendimento desta dominação velada que sofremos , seremos capazes de reverter no sentido de buscar um pluralismo jurídico , centrados nas pessoas e não nos mercados. Com efeito, é necessário preencher o direito com epistemologia de pessoas pretas, LGBTQIA+, indígenas , pautas que ainda se encontram demasiadamente silenciadas .  Em suma o STF manteve o ensino religioso confessional , mesmo sabendo que isso configura um desrespeito  com as demais denominações , na realidade em momento algum foi levada em consideração a pluralidade que habita no Brasil , porque o primado do direito ainda impera nos tribunais. Por fim , segundo a referida jurista é “necessário recuperar o conceito de pluralismo jurídico em um horizonte de reconhecimento de outros universos jurídicos (p. 111)”. Ademais, ela continua “(...) as Epistemologias do Sul devem ser um projeto epistêmico e político. Aliás, ela não só propõe uma descrição de pluralidade , mas também uma transformação das hierarquias impostas pela modernidade. O fetichismo do primado do direito moderno tem que ser ultrapassado”. Urge , portanto, que o sul precise deixar de reverberar as atitudes narcísicas do norte  , deixemos de ser Eco e passemos a ter autonomia das nossas epistemologia.

 

Referências :

 

Acórdão-4439-Ensino-Religioso-STF.pdf - Google DriveA descolonização do pensamento na obra de Grada Kilomba - ARTE!Brasileiros (artebrasileiros.com.br)

(2021) Bibliografia Básica - SOCIOLOGIA DO DIREITO (2.º sem) (google.com)

Pollyanna Nogueira . Direito noturno . 
Turma XXXVIII 

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