O mito de Narciso e Eco é uma narrativa da mitologia grega que conta a história de um rapaz que só olhava para si próprio, e por isso , foi condenado a se apaixonar por alguém que não corresponderia ao seu amor, nesse caso ele se apaixonou pelo seu próprio reflexo. Eco era uma ninfa que, por falar demais , também foi condenada pelo Deus Juno a repetir, estritamente, as últimas palavras escutadas. Nesse sentido, enquanto Narciso fica petrificado olhando para sua imagem e dizendo: amo-te, volta para mim, Eco que é apaixonada por Narciso repete “ volta para mim “, “ para mim”, ou seja, Narciso não conseguia ver nada a sua volta a não ser o reflexo da sua imagem, era como se outros não existissem .Além disso, Narciso conta com o consenso de Eco , que só repete e valida tudo que ele diz , sem questionar , pois Juno retirou essa autonomia dela .
É possível fazer um paralelo entre o mito
supracitado e o artigo da jurista Sara Araújo ;O primado do direito e as
exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Os estudos
de Sara Araújo esclarece que o direito moderno eurocêntrico é um instrumento
poderoso de reprodução do colonialismo, que promove exclusões abissais
(p.88).Nesse aspecto, ela também esmiúça com primor a metáfora do pensamento
abissal , proposto , inicialmente, pelo
professor Boaventura de Souza Santos. De acordo com esta análise , o
pensamento moderno impõe e estabelece os limites de uma linha abissal que
divide o mundo entre o universo “ deste lado da linha” e o “universo do outro lado
da linha"(p.96), ou seja, tudo que é posto pelo norte é considerado
válido, legítimo e digno, enquanto que
toda forma de conhecimento, costumes,
engendradas no sul são considerados atrasados . Desse modo, temos o
norte como Narciso e para o sul foi
imposto o papel de Eco, no sentido de reverberar o que é dito lá, da mesma
forma que o Deus Juno condenou Eco a repetição o sul também foi condenado , ou ao silêncio , ou somente
falar se for palavras ou conceitos repetidos.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) número 4439/STF à luz da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (lei 9.394/96) permite uma análise a partir dos conceitos
elucidados por Sara Araújo .Na referida ação, a Procuradoria Geral da República
impetrou uma ADI em face da inclusão de ensino religioso confessional, que
consiste em uma disciplina que segue os ensinamentos de uma religião específica . A PGR entendeu que a
inclusão desse ensino estava em desacordo com o artigo 19,inciso I ,da Constituição Federal , pois além dessa
disciplina ser extremamente tendenciosa ela ainda faria com que o preconceito religioso se propagasse
entre os estudantes , haja vista que o projeto inicial seria ter várias
religiões distintas disponíveis e o
aluno por livre espontânea vontade participaria
daquela que melhor lhe convir. Mesmo sendo uma decisão óbvia , o STF
surpreendeu e por seis votos a cinco e o pedido da PGR foi indeferido e a
partir do dia 27 de setembro de 2017 , a disciplina passou a fazer parte do
ensino público brasileiro, salvo escolas particulares. .
Sob esse viés , é possível depreender,
portanto, que a Suprema Corte agiu de acordo com as epistemológicas
fundamentadas no norte , pois é de conhecimento de todes que a
população originária que habitava o Brasil
foram coercitivamente catequizado
pelos padres portugueses e , devido a isso outras formas de culto foram invisibilizadas ou foram demonizadas ,
e somente a religião trazida pelos europeus , ou seja , o catolicismo foi posto como sacrossanto, claro
que atualmente o protestantismo, em especial , as igrejas neopentecostais tomou
uma dimensão absurda. Nesse sentido , em seu artigo Sara Araújo destaca o
trecho do pensamento do jurista estadunidense
Ralph Nader , “ (..) no contexto do colonialismo e do imperialismo, o
primado do direito pode resultar em desordem e não em ordem, promovendo a
continuidade da opressão , em vez da interrupção da prática colonial (...)” , desse modo , o STF deveria agir com o intuito de
extirpar essa dicotomia, uma vez que as religiões consideradas não hegemônicas
, sofrem preconceito e discriminação até hoje “.Além disso, Sara Araújo é
precisa ao detalhar que o direito
espelha-se em cinco monoculturas jurídicas da razão metonímica, ou seja , torna
uma parte com um todo, melhor dizendo , viabiliza somente o que é hegemônico e
atribuí de modo persuasivo sua máxima a todos, atravessando todas as barreiras geográficas .A vista disso, temos a
carta de direitos humanos que é de matriz totalmente eurocêntrica , lembrando
que a nossa Constituição é embasada nesses preceitos ,ou seja, não leva em
conta as particularidades de cada país . Tanto que na mesma constituição que
prevê a laicidade do Brasil, também dispõe no artigo 210 , que o ensino
religioso , de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental .Desse modo, Sara Araújo afirma “ (...)A Constituição, ainda que
seja intercultural, não deixa de ser um
instrumento eurocêntrico e está sujeita às diretrizes que vêm das regulações
internacionais” .
Infere-se, portanto, que os conceitos
explanados pela jurista portuguesa Sara Araújo é de extrema valia para
população que está do outro lado da linha , ou seja , no hemisfério sul , uma
vez que a partir do entendimento desta dominação velada que sofremos , seremos
capazes de reverter no sentido de buscar um pluralismo jurídico , centrados nas
pessoas e não nos mercados. Com efeito, é necessário preencher o direito com
epistemologia de pessoas pretas, LGBTQIA+, indígenas , pautas que ainda se
encontram demasiadamente silenciadas .
Em suma o STF manteve o ensino religioso confessional , mesmo sabendo
que isso configura um desrespeito com as
demais denominações , na realidade em momento algum foi levada em consideração
a pluralidade que habita no Brasil , porque o primado do direito ainda impera
nos tribunais. Por fim , segundo a referida jurista é “necessário recuperar o
conceito de pluralismo jurídico em um horizonte de reconhecimento de outros
universos jurídicos (p. 111)”. Ademais, ela continua “(...) as Epistemologias
do Sul devem ser um projeto epistêmico e político. Aliás, ela não só propõe uma
descrição de pluralidade , mas também uma transformação das hierarquias
impostas pela modernidade. O fetichismo do primado do direito moderno tem que
ser ultrapassado”. Urge , portanto, que o sul precise deixar de reverberar as
atitudes narcísicas do norte , deixemos
de ser Eco e passemos a ter autonomia das nossas epistemologia.
Referências :
Acórdão-4439-Ensino-Religioso-STF.pdf
- Google DriveA
descolonização do pensamento na obra de Grada Kilomba - ARTE!Brasileiros
(artebrasileiros.com.br)
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