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domingo, 29 de outubro de 2017

Realidade penal x idealismo normativo

Ex-jogador de futebol e comentarista Edmundo: condenado em 1999, pelos homicídios culposos de três pessoas vitimadas em atropelamento − ocorrido em 1995. Após 21 recursos, 12 anos após o acidente, a prescrição impediu qualquer forma de punição.  Ex-senador Luís Estevão: condenado por desviar 169 milhões da obra do TST-SP, em 1992; apresentara ao longo do processo 35 recursos (26 deles apenas no STJ) e, somente com a possibilidade de prisão em segunda instância, teve sua prisão decretada em 2016 – duas das penas já estavam tecnicamente prescritas e, em 2018, estelionato e peculato também prescreveriam.
Estes casos ilustram bem o sistema de recursos infindável do Direito penal brasileiro e direcionam o debate, de pronto, à discussão quanto à possibilidade das prisões em segunda instância, justamente em um contexto de busca por efetividade da jurisdição penal − em fronte, sobretudo, da decisão das ADCs 43 e 44 pelo STF, de Outubro de 2016, que firmou jurisprudência no sentido de que a execução da pena após condenação em segunda instância não fere o princípio da presunção da inocência.
O debate mostra-se habituado em dois momentos. O primeiro deles remete-se a um suposto excesso de participação do Poder Judiciário, que poderia estar praticando o dito “ativismo judicial”. Ora, o PEN e a AOB, por meio de ADCs, é que demandaram a concessão da medida cautelar para suspender execuções antecipadas em segunda instância. O STF, por sua vez, fez seu papel de − como assenta Barroso ao tratar da judicialização – “velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando com um fórum de princípios”, já que é “o intérprete final da Constituição”. Em miúdos: o guardião da constituição, “aquele que não desempenha uma atividade puramente mecânica” – e, por isso, acaba não raramente (e inevitavelmente) participando do processo de criação do Direito − foi provocado a deliberar sobre o assunto prisões em segunda instância e naturalmente o fez – quer se ache correta, ou não, a legítima decisão.
A partir deste último quesito chega-se ao segundo e peremptório mote da discussão, que toca o mérito da decisão em si. Para tal, faz-se cogente a ciência dos papéis típicos das instâncias superiores, muitas vezes negligenciada em uma leiga discussão: STF e STJ são responsáveis por uniformizar a interpretação da constituição, não lhes cabendo analisar o fato ou mérito das ações avaliadas (função das primeiras instâncias); sendo, portanto, os cumpridores basicamente da inquirição da legalidade das referidas ações – informe-se aqui que a esmagadora maioria das ações que chega a essas instâncias está, sim, de acordo com a legalidade, como estipula Fachin em 98 ou 99%. Dito isto, mostra-se equivocado o juízo de que a supressão de uma terceira instância estaria abduzindo a presunção da inocência de um processo, uma vez que, além da análise dos fatos e provas não ultrapassarem a segunda instância, como dito; certamente o constituinte não tivera na criação das instâncias superiores a finalidade de conceder uma terceira ou quarta “chance” para revisão de uma decisão da qual o réu não goste ou não esteja com ela satisfeito – poderia tê-lo feito, especificando as instâncias superiores no Art. 5º, LXI, CF/88.
Nesse sentido, deve-se acrescentar ainda que a presunção da inocência, como assevera Barroso em seu voto, configura-se não em uma regra, mas em um princípio, sendo, portanto, passível (e indispensável que assim seja) de ponderações. Em eventuais conflitos entre esses, mostra-se aplicável, portanto, o chamado sopesamento, a fim de pesar ou afazer-se qual deles deverá prevalecer. Aplicando-se à realidade, tem-se que um indivíduo condenado em primeira instância, com a confirmação desta em segunda instância, por um órgão de natureza colegiada; terá levado em conta a forte declaração acerca de sua culpabilidade, permitindo-se assim a execução do acórdão penal anterior ao julgamento de eventuais recursos especial ou extraordinário − que poderiam, caso contrário, comprometer a efetividade da jurisdição penal, levando-se às já exemplificadas prescrições e impunidade.
A discussão quanto à prisão em segundo grau mostra-se muito acolá da pueril apreciação normativa do “inocente até o transito em julgado”. Deve-se levar em conta a abundância de possibilidades de recursos, que acaba por criar um sistema recursal caótico, em que o crime parece compensar e torna impotentes os aplicadores das penas frente aos poderosos e seus advogados-recursais. Têm-se, sobretudo, a cada vez maior descrença da comunidade em relação à justiça e, por consequência temerosa, com a própria democracia.
Dessa forma, um posicionamento favorável à prisão a partir da condenação em segunda instância é ser não a contra a ordem constitucional, mas contra os “Edmundos”, os “Luís Estevãos” e os ditos “criminosos do colarinho branco”, que acabam por se alocar acima das leis. É ser a favor que o Direito penal brasileiro deixe de “só prender menino pobre com 100g de maconha”, como exalta Barroso. Permitir prisão antes do trânsito em julgado é olhar a atual realidade desarmônica e afiançar o sopesamento − e, por decorrência, equilíbrio entre os princípios da presunção de inocência e da efetividade da jurisdição penal, tal como ocorre em países como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina. Permitir prisão antes do trânsito em julgado é garantir, sim, ampla defesa, total acesso a Habeas Corpus e ainda a busca por uma reforma política para se evitar o “risco de se morrer de cura” da judicialização; mas é garantir também, realisticamente, que as elites ou “os providos de alta capacidade de defesa jurídica” sejam punidos sem o escudo ou instrumento de fuga dos desmesurados recursos aventureiros e infinitos.

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