- Ela é tão livre que um dia será presa.
- Presa por quê?
- Por excesso de liberdade.
- Mas essa liberdade é inocente?
- É. Até mesmo ingênua.
- Então por que a prisão?
- Porque a liberdade ofende.
(Clarice Lispector)
Escrever sobre liberdade é algo que, a princípio, não pensamos que possa ser muito difícil, mas que depois se mostra praticamente impossível. Questionar o que é a liberdade, de onde ela vem, o porquê de a desejarmos tanto é um dos maiores clichês que eu consigo imaginar. Mas, assim mesmo, nos dipomos a tentar entendê-la, decifrá-la e, se tivermos muita sorte, alcançá-la tal como a imaginamos. Todo mundo tem uma ideia de liberdade. Montesquieu, por exemplo, afirmava que a liberdade era o direito de fazer tudo o que a lei permite. Aquela velha história de que a minha liberdade começa onde a sua termina, e por isso, dependendo do quanto forçamos a barra, passa a ser uma ofensa. Dessa maneira, para mediar as consequências do ideal de liberdade, existe o Direito, a Justiça em si.
Hegel via o Direito como liberdade em geral, acreditava na limitação desta para que pudesse estar de acordo com o livre-arbítrio de cada um. Assim, as diversas formas do Direito derivariam da diversidade no desenvolvimento do conceito de liberdade, o que levaria, em seguida, à felicidade. O Direito teria então um caráter universal que se contrapõe à individualidade. Marx surge em seguida criticando toda a ideia hegeliana. Para ele, o Direito não significa liberdade, é, pelo contrário, essencialmente o instrumento característico de uma classe, já que "os pensamentos da classe dominante são os pensamentos dominantes". Critica então a filosofia especulativa de Hegel e a associa à análise abstrata da religião, que para ele, compensa as insuficiências da realidade e é apenas uma maneira de manter os homens iludidos em suas imaginações. Na concepção de Marx, a emancipação, a revolução real, ocorreria somente quando uma classe surgisse representando o todo da sociedade (mesmo que isso signifique, necessariamente, que deva existir uma classe opressora). E essa classe emancipadora seria o proletariado, que como ele afirma na sua "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", estava ainda apenas se formando e se estruturando na Alemanha, à época dominada por um idealismo que ele também critica.
Cada uma das visões tem, é claro, sua lógica, mas acredito que, pelo menos hoje, ambas estejam um pouco desgastadas ou desprestigiadas. Não podemos dizer que o Direito seja a expressão única de uma classe dominante. Esta possui, sim, certas vantagens, mas que não podem ser de todo obra do Direito. Este procura, antes de tudo, tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, e não se pode negar que nesse aspecto avançamos muito desde os séculos passados, quando as classes mais baixas não tinham nenhum tipo de proteção do Estado, que concedia privilégios exorbitantes às classes dominantes. Mas também não sejamos ingênuos: é certo que a luta pela igualdade material, concreta, e a completa universalidade do Direito ainda têm um longo caminho pela frente, tanto que a individualidade, a defesa de interesses particulares, a confusão entre o "público" e o "privado" ainda frequentemente nos chocam com o teor de suas injustiças sociais.
Voltando à questão do Direito como liberdade, então, penso que esta também deve ser analisada com mais calma. Igualar um ao outro seria uma conclusão um tanto quanto precipitada. Antes de tudo, acredito que a liberdade deva ser vista não como um fim, mas como uma consequência puramente interior. A liberdade não surge do Direito e o Direito não surge da liberdade, pois isso seria dizer que um é igual ao outro. E não é, apesar de estarem intimamente relacionados entre si. A função do Direito é impedir que as pessoas sejam tomadas por um "excesso de liberdade", traçando os contornos da mesma. Talvez alguns digam que liberdade com limites não é liberdade, que o excesso não pode fazer mal, etc. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que não podemos fazer tudo o que queremos, pois existem certas coisas que a nossa organização social não permite e que o Direito, como mediador da mesma, proíbe. Do contrário, estaríamos livres para matar, roubar, fazer tudo o que nos passasse pela cabeça, e, sem dúvida alguma, viveríamos num caos. Assim, temos o direito de errar, de pensar o que quer que seja, mas essa liberdade não pode ser prejudicial a ninguém, porque o Direito assim estabelece. Devemos, acima de tudo, saber conciliar a justiça e a liberdade.
Em suma, nos vemos novamente diante da pergunta que não quer calar: afinal, o que é liberdade? Não vou defini-la, simplesmente porque não saberia fazer isso. Provavelmente nunca saberemos a resposta dessa questão, porque, como disse no início do texto, todo mundo tem uma ideia de liberdade. A minha pode não ser a sua, pode ofender a de outro, pode ser igual à de mais alguém, mas sem nunca chegar a uma confirmação, ou a qualquer lugar que seja. É um beco sem saída, no qual tendemos a ficar mais confusos ainda. Sartre disse uma vez que não devemos analisar nossa liberdade, senão deixamos de ser livres. Concordo plenamente com ele. Cecília Meireles também está coberta de razão ao apontar: "Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda..."
Assim, que cada um seja feliz com a sua própria liberdade, mas que saiba enfrentar as consequências dela, seja como for.
Tema: O direito como liberdade
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