Total de visualizações de página (desde out/2009)

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Dura Lex Nuper Lex: Uma análise da ADPF 54 à luz de Bourdieu

 

No ano de 2012,  o Supremo Tribunal Federal decidiu por 8x2 aquele que se tornaria um dos casos mais emblemáticos da sua história bicentenária, trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, a matéria julgada foi, ab ovo, se era possível realizar a interrupção terapêutica da gravidez em casos de anencefalia do feto.

Mais do que um hard case jurídico, a ADPF 54 provocou grande mobilização e debate na sociedade em geral pela forte carga moral do tema. “Interromper terapeuticamente uma gravidez de feto anencefálico” é, de certa maneira, uma forma floreada de se dizer “abortar”, o aborto sem dúvida é uma das matérias mais sensíveis, debatidas e controversas da atual realidade jurídica, para determinada parcela da sociedade, deveria ser um direito acessível e pleiteável das mulheres, para outros trata-se de um crime contra a vida, a autorização jurídica do infanticídio discricionário.

            É possível notar que estes últimos, que acreditam ser o aborto uma infâmia, o fazem por pura motivação moral filosófico-religiosa e ainda que seja legítimo (e desejável) possuir um código de conduta moral pessoal até coletivo, a problemática surge ao querer transplantar esse código ético para o código jurídico. É justamente o que adverte o sociólogo francês Pierre Bourdieu ao falar sobre a instrumentalização do Direito, para ele as classes dominantes além de capital econômico e detenção dos meios (como proclama Marx) possuem ainda o capital simbólico, isto é, um poder cultural e institucional que pode (e é) utilizado para impor uma visão específica de mundo ao resto da sociedade, dessa forma, se é a classe dominante marcadamente cristã, como no Brasil, as estruturas jurídico-sociais refletirão, ainda que de forma implícita, a moral cristã.     Quando o habitus, matriz cultural incorporada que predispõe os indivíduos a certas escolhas, torna-se fonte do Direito, ele próprio transforma-se num instrumento.

            Ainda no caso, é necessário refletir que o aborto no Brasil não é exatamente proibido, ele tem sua permissividade restrita à determinadas situações, como o estupro, a ameaça grave à vida da gestante e depois da ADPF 54, os casos de anencefalia fetal, estas situações onde o aborto é permitido foram conquistadas ao longo dos anos, isso pode ser explicado através do conceito do “espaço dos possíveis” de Bourdieu, aquilo que é objetivamente plausível e aceitável pela sociedade muda com o passar dos anos, dessa forma é necessário haver uma historicização das normas, isto é, trazer a interpretação hermenêutica para a atualidade, como foi feito na ADPF 54, visto que à época da elaboração do Código Penal, não era sequer possível identificar a anencefalia fetal preventivamente, dessa forma não é possível esperar que a legislação da época preveria a interrupção.  

Para Bourdieu (a contragosto de Kelsen), O Direito não encontra em si próprio o princípio da transformação (embora se expressam demandas na linguagem jurídica, os princípios da transformação jurídica provêm do externo), é preciso mobilização cívico-social para promover a modernização jurídica, sem essa mudança estaremos para sempre estagnados em normas que já não atendem os moldes contemporâneos ou pior, seguiremos escravos de um código moral que talvez não nos pertença, e ainda que pertença não nos devia ser possível imputá-lo aos outros como norma.  

 

Daniel Godas Galhardo Damian

1° Ano Direito - Matutino

Nenhum comentário:

Postar um comentário