No
ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal
decidiu por 8x2 aquele que se tornaria um dos casos mais emblemáticos da sua
história bicentenária, trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) nº 54, a matéria julgada foi, ab ovo, se era possível realizar a interrupção terapêutica da
gravidez em casos de anencefalia do feto.
Mais
do que um hard case jurídico, a ADPF 54 provocou grande mobilização e debate na
sociedade em geral pela forte carga moral do tema. “Interromper terapeuticamente
uma gravidez de feto anencefálico” é, de certa maneira, uma forma floreada de
se dizer “abortar”, o aborto sem dúvida é uma das matérias mais sensíveis,
debatidas e controversas da atual realidade jurídica, para determinada parcela
da sociedade, deveria ser um direito acessível e pleiteável das mulheres, para
outros trata-se de um crime contra a vida, a autorização jurídica do
infanticídio discricionário.
É possível notar que estes últimos,
que acreditam ser o aborto uma infâmia, o fazem por pura motivação moral
filosófico-religiosa e ainda que seja legítimo (e desejável) possuir um código
de conduta moral pessoal até coletivo, a problemática surge ao querer
transplantar esse código ético para o código jurídico. É justamente o que
adverte o sociólogo francês Pierre Bourdieu ao falar sobre a instrumentalização
do Direito, para ele as classes dominantes além de capital econômico e detenção
dos meios (como proclama Marx) possuem ainda o capital simbólico, isto é, um
poder cultural e institucional que pode (e é) utilizado para impor uma visão
específica de mundo ao resto da sociedade, dessa forma, se é a classe dominante
marcadamente cristã, como no Brasil, as estruturas jurídico-sociais refletirão,
ainda que de forma implícita, a moral cristã. Quando
o habitus, matriz cultural incorporada que predispõe os indivíduos a certas
escolhas, torna-se fonte do Direito, ele próprio transforma-se num instrumento.
Ainda no caso, é necessário refletir
que o aborto no Brasil não é exatamente proibido, ele tem sua permissividade
restrita à determinadas situações, como o estupro, a ameaça grave à vida da
gestante e depois da ADPF 54, os casos de anencefalia fetal, estas situações
onde o aborto é permitido foram conquistadas ao longo dos anos, isso pode ser
explicado através do conceito do “espaço dos possíveis” de Bourdieu, aquilo que
é objetivamente plausível e aceitável pela sociedade muda com o passar dos
anos, dessa forma é necessário haver uma historicização das normas, isto é,
trazer a interpretação hermenêutica para a atualidade, como foi feito na ADPF
54, visto que à época da elaboração do Código Penal, não era sequer possível
identificar a anencefalia fetal preventivamente, dessa forma não é possível
esperar que a legislação da época preveria a interrupção.
Para
Bourdieu (a contragosto de Kelsen), O Direito não encontra em si próprio o
princípio da transformação (embora se expressam demandas na linguagem jurídica,
os princípios da transformação jurídica provêm do externo), é preciso
mobilização cívico-social para promover a modernização jurídica, sem essa
mudança estaremos para sempre estagnados em normas que já não atendem os moldes
contemporâneos ou pior, seguiremos escravos de um código moral que talvez não
nos pertença, e ainda que pertença não nos devia ser possível imputá-lo aos
outros como norma.
Daniel Godas
Galhardo Damian
1° Ano Direito
- Matutino
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