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terça-feira, 30 de agosto de 2022

ADPF 54: uma análise a partir do arcabouço teórico de Pierre Bourdieu

 

A ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional de nº 54) trata da interrupção da gravidez em um caso de feto anencéfalo. Em linhas gerais, a anencefalia é definida como uma má formação do cérebro, que se caracteriza pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. Como se trata de uma patologia letal, mesmo quando o bebê sobrevive ao parto, a vida extrauterina geralmente é inviável por mais que alguns minutos ou horas.

Na referida ADPF, com relatoria do Ministro Marco Aurélio, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, como parte requerente, demanda a declaração de “inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal (...)”. Ou seja, a parte requerente demanda que o aborto no caso citado não seja compreendido como crime, tal qual previsto nos artigos acima citados do Código Penal brasileiro.

Apesar da demanda se dar na esfera judicial, trazendo o conceito de “campo” desenvolvido por Pierre Bourdieu em “O Poder Simbólico”, percebemos que a questão revela uma situação de conflito envolvendo diversos campos: campo jurídico, campo médico, campo científico, campo moral e campo social.

Em relação ao “espaço dos possíveis”, conceito que trazemos do mesmo autor, podemos perceber que a demanda em questão consegue se fundamentar com amparo tanto na legislação existente, bem como na jurisprudência, na literatura jurídica e na doutrina. Em relação a legislação vigente, o próprio voto do Ministro Gilmar Mendes evidencia esse espaço dos possíveis.

Mesmo compreendendo a interrupção da gravidez de anencéfalo como aborto, o ministro recorre ao próprio Código Penal e aos “excludentes de ilicitudes” previstos pelo mesmo. Historicizando a norma, Gilmar alega que a legislação penal oriunda da década de 1940 estava inserida em um contexto bastante diferente do atual, o qual não dispunha das possibilidades de diagnósticos trazidas por mais de meio século de desenvolvimento tecnológico e científico. Nesse sentido, a norma deve ser interpretada a luz dos novos tempos.

Ainda dentro do campo dos possíveis, temos as alegações da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que, amparada nos preceitos constitucionais de “dignidade da pessoa humana”, “liberdade e autonomia da vontade”, e “direito a saúde”, coloca a situação de verdadeira “tortura” para a mulher manter a gestação de feto anencéfalo que, por conta de sua condição, não teria a capacidade potencial de sobreviver e ser pessoa. Nesse sentido, não podendo ser pessoa, não existiria um sujeito passivo do crime de aborto.

Por fim, ainda dentro da perspectiva de Bourdieu, a decisão proferida pelo acordão do Supremo Tribunal Federal e as alegações emitidas na referida ADPF revelam as pretensões de universalidade e neutralidade do campo jurídico, que busca fundamentar a decisão com base no próprio ordenamento jurídico vigente, bem como em preceitos médicos-científicos, evitando, dessa forma, manifestações de cunho moral pessoal.

 

Citando a literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intrauterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante.

 

 

            O argumento contido no trecho acima citado evidencia claramente a busca da “neutralidade/objetividade” pretendidas pela ciência como parte da fundamentação da decisão. O outro aspecto de “imparcialidade” consiste no que já tratamos quando falamos do campo dos possíveis, ou seja, na busca de justificar a decisão com base em uma interpretação racional do ordenamento jurídico brasileiro, tentando mostrar a interpretação como um desdobramento racional contido na própria legislação.

 

Saymon de Oliveira Justo

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