A ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional de
nº 54) trata da interrupção da gravidez em um caso de feto anencéfalo. Em
linhas gerais, a anencefalia é definida como uma má formação do cérebro, que se
caracteriza pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. Como se
trata de uma patologia letal, mesmo quando o bebê sobrevive ao parto, a vida
extrauterina geralmente é inviável por mais que alguns minutos ou horas.
Na referida ADPF, com
relatoria do Ministro Marco Aurélio, a Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde, como parte requerente, demanda a declaração de “inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da
gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128,
incisos I e II do Código Penal (...)”. Ou seja, a parte requerente demanda
que o aborto no caso citado não seja compreendido como crime, tal qual previsto
nos artigos acima citados do Código Penal brasileiro.
Apesar da demanda se dar na
esfera judicial, trazendo o conceito de “campo” desenvolvido por Pierre
Bourdieu em “O Poder Simbólico”, percebemos que a questão revela uma situação
de conflito envolvendo diversos campos: campo jurídico, campo médico, campo
científico, campo moral e campo social.
Em relação ao “espaço dos
possíveis”, conceito que trazemos do mesmo autor, podemos perceber que a
demanda em questão consegue se fundamentar com amparo tanto na legislação
existente, bem como na jurisprudência, na literatura jurídica e na doutrina. Em
relação a legislação vigente, o próprio voto do Ministro Gilmar Mendes
evidencia esse espaço dos possíveis.
Mesmo compreendendo a
interrupção da gravidez de anencéfalo como aborto, o ministro recorre ao
próprio Código Penal e aos “excludentes de ilicitudes” previstos pelo mesmo. Historicizando
a norma, Gilmar alega que a legislação penal oriunda da década de 1940 estava inserida
em um contexto bastante diferente do atual, o qual não dispunha das
possibilidades de diagnósticos trazidas por mais de meio século de
desenvolvimento tecnológico e científico. Nesse sentido, a norma deve ser
interpretada a luz dos novos tempos.
Ainda dentro do campo dos
possíveis, temos as alegações da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde, que, amparada nos preceitos constitucionais de “dignidade da pessoa
humana”, “liberdade e autonomia da vontade”, e “direito a saúde”, coloca a
situação de verdadeira “tortura” para a mulher manter a gestação de feto
anencéfalo que, por conta de sua condição, não teria a capacidade potencial de
sobreviver e ser pessoa. Nesse sentido, não podendo ser pessoa, não existiria
um sujeito passivo do crime de aborto.
Por fim, ainda dentro da
perspectiva de Bourdieu, a decisão proferida pelo acordão do Supremo Tribunal
Federal e as alegações emitidas na referida ADPF revelam as pretensões de
universalidade e neutralidade do campo jurídico, que busca fundamentar a
decisão com base no próprio ordenamento jurídico vigente, bem como em preceitos
médicos-científicos, evitando, dessa forma, manifestações de cunho moral
pessoal.
Citando a
literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo
neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios
cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intrauterina, alcançando 65% dos casos,
ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto
anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar
danos à saúde e à vida da gestante.
O
argumento contido no trecho acima citado evidencia claramente a busca da
“neutralidade/objetividade” pretendidas pela ciência como parte da
fundamentação da decisão. O outro aspecto de “imparcialidade” consiste no que
já tratamos quando falamos do campo dos possíveis, ou seja, na busca de
justificar a decisão com base em uma interpretação racional do ordenamento
jurídico brasileiro, tentando mostrar a interpretação como um desdobramento
racional contido na própria legislação.
Saymon de Oliveira Justo
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